A 12 deste mês, ficou concluída e completada a inventariação da paróquia de São José de Lavegadas, com um total de 24 novas fichas e o respectivo registo fotográfico do património encontrado, na igreja matriz e nas capelas, o qual merecera, igualmente, a particular atenção manifestada pelo senhor Padre Anselmo Ramos Dias Gaspar, no decurso da paroquialidade, ali realizada. O encargo, agora cumprido, teve o constante acompanhamento do actual Prior, o Padre Joaquim Lopes Ribeiro Natário, e da senhora D. Maria Isabel Coimbra Coelho.
O longo passado histórico, destes sítios, é o mesmo da paróquia de São Miguel, da qual foram desmembrados e que tem o destaque na primazia, pelos testemunhos ancestrais, ainda materializados na serrania sobranceira, consignados nas fontes diplomáticas medievais e fixados nas explicitudes toponímicas, anteriormente contextualizadas, com especial relevância na Vila Chã, o designativo da vasta exploração agrária (villa) implantada na planura, em conformidade chamada plana para indicar o território, topograficamente rodeado de cumeadas.
Esse particularismo pode conter a origem do povoamento local que, independentemente da possibilidade inteira de ter principiado com a Reconquista cristã, estaria dependente do vizinho castro e podia, perfeitamente, produzir topónimos atinentes ao gradual fluir das continuadas gerações humanas: forçados, pelos romanos conquistadores, a descerem das submetidas eminências castrejas, para os campos das imediações, os povos autóctones obtiveram, ali, mais amplas condições de vida, pelo que prosseguiram o crescente desbravamento de terras, em breve designadas na dimensão de propriedades rústicas, onde vieram a surgir povoações.
Isso certifica o caso de villa Valaildi, de Valaildus, o nome pessoal germânico, recordado no topónimo Vale de Vaíde, que, pelo uso da preposição e pela existência do genitivo, mostra o grau de independência deste Vaaidi face a Vila Chã, também pré-nacional, sendo aquele acompanhado por três outros índices de antiguidade, como Alveite - uma eventual Alviti villa, de Alvitus -, Celas - as salellas, saellas, derivadas de sala, o apêndice urbano da circunscrição agrária - e Vale do Gueiro, indubitavelmente suevo-visigótico, como qualquer um dos elencados.
Um penedo ciclópico, vulgarmente designado dos Mouros, reporta, mediante o vocábulo empregue, aquilo que a nomenclatura popular prefere para mencionar âmbitos de carácter arqueológico, no geral atinente à Romanização, à proto-história e aos monumentos megalíticos, anteriores a esta. Tal é o caso do dólmen situado na passagem planáltica da serra do Bidoeiro para a da Atalhada, existente na linha do viso; a notória mamoa e os restos da câmara funerária volumetrizam a grandiosidade da construção, parcialmente visível, implantada nos confins ocidentais do território, que lhes pertencia.
Por mais incrível que pareça, este facto traduz a demarcação de uma fronteira natural, imemoriável, assim assinalada por grupos tribais, de caçadores-recolectores, na fase de incipiente sedentarização, que, com a deposição dos enterramentos - de modo primário, ou, secundário -, transferiam para os defuntos a perene função de vigilância sobre o exterior, e transmitiam, aos adventícios, estranhos, a sacralidade telúrica do lugar, a reclamar pleno respeito, enquanto declarava deter uma organização autónoma.
Deste sítio incomparável, constituído paradigmático, pela justa percepção admiravelmente captada pelos camponeses da sociedade neolítica, o panorama visual alcança os maciços do Caramulo, a cordilheira da Estrela, parcialmente nevada, os picos da serra da Rocha, a mole da Lousã e montes direccionados ao Atlântico. Num ângulo giro, a observação do horizonte paira sobre alargados domínios transterritoriais, enquanto, no sentido Nascente, as rampas, precipitadamente íngremes, definem os confins imediatos, debruçados sobre os profundos meandros do rio Alva, um outro reforço delimitativo do dito território.
Com efeito, esta precisa circunstância tem permanecido inalterável, desde o V milénio a.C., e, a partir da generalizada cristianização das tradições e dos costumes religiosos, cuja maior intensidade provém de Trento, fora construída uma ermida, dedicada às Almas, a curta distância e frente ao tumulus, reafirmando a velha crença (supersticiosa) acerca do cruzamento dos caminhos, todavia, com o novo enquadramento cristão, só que uma perdida/obscura menção medieval - porque tão repetida, no fluente facilitarismo reducionista e deturpador, característico da cultura oral, popular - acabou finalizada na expressão capela de São Pedro Dias, quando tal invocação é recentíssima e deve redundar das tónicas em que figurava um substantivo, talvez a serra ao pé do Dordias, como parece crível, salvo certeza em contrário.
Nos plainos da vertente levantina, de parcelas com óptimos terrenos agrícolas, tinha o Presbítero Ismael vários bens fundiários, que, em 946, dispusera, em testamento, para o mosteiro de Lorvão, e no qual começa por incluir a uilla mucella integra per suis locis terminis antiquis (…) et est illa uilla pernominata in ripa de aluia. Et illa ecclesia uocabulo sancti martini cum omni illorum seruitio (Diplomata et Chartae, 55). Novamente, o titular é, de facto, das melhores devoções da pré-nacionalidade, repetidamente citado nos documentos antigos, entre os favoritos.
Volvidos séculos, a plataforma sacralizada do lugar, estabelecida sobre vertiginosas ravinas, nas ribas abruptas da margem do rio, sintoniza circunstâncias típicas de remotas idades, permanecendo singular e, sugestivamente, reveladora de particularidades egrégias, tanto mais importantes quanto do posterior povoado de Lavegadas nenhum rasto subsiste.
Restam uns lugarejos habitados, a paróquia instituída pelo desmembramento da de São Miguel e a comum inclusão no enorme senhorio do Mosteiro de Santa Cruz, aqui, transferido, também, para a Universidade, a partir de 1537, depois referido como curato, desta apresentação académica. A par das interessantes informações histórico-arqueológicas, enunciadas, prevalece um diminuto acervo patrimonial, onde a escultura calcária, de tradição quatrocentista e quinhentista, a imaginária do século XVII e XVIII, vários estanhos e apreciáveis manufacturas, em metal, e outras peças omnipresentes, como missais setecentistas, ocupam os principais haveres, felizmente conservados.