uma vida dedicada aos pobres
Comemorou no passado dia 27 de Junho, 70 anos de sacerdócio. O padre Manuel Francisco Rumor abriu o livro da sua vida numa entrevista concedida ao jornal Boa Nova.
Nascido a 23 a Setembro de 1914, na Gândara – freguesia de Covão do Lobo, concelho de Vagos – Manuel Francisco Rumor entrou para o Seminário de Coimbra com 12 anos. A ordenação como padre chegaria a 27 de Junho de 1937, assumindo funções como coadjutor na Pampilhosa da Serra e pároco em Pessegueiro.
Em 1939 muda-se para Cadima, e por cá ficou. Durante os 62 anos que esteve à frente da paróquia foi arcipreste de Cantanhede, fundador da Obra dos Pobres e do Centro Social e Paroquial de Cadima, em 1988, onde tem um busto em sua homenagem.
Nas suas várias viagens pelo Brasil e pelo país desempenhou um papel importante como pregador, sendo até hoje o único assistente diocesano da Liga Eucarística.
Deixou de exercer as funções de pároco a 15 de Janeiro de 2001, passando os seus dias na antiga cada da Obra dos Pobres, a rezar o rosário.
Entrevista de
Carlos Delgado
Mirla Ferreira Rodrigues
Quando surgiu a vocação sacerdotal?
Como eu gostava muito de galinha, a minha madrinha de baptismo disse-me uma vez, na minha juventude: “Hás-de ir para padre, porque os padres comem sempre galinha”. (risos). Era uma brincadeira, mas o certo é que pouco tempo depois, em 1925, entrei para o Seminário de Coimbra por intermédio do prior Augusto Gomes da Silva, de Covão do Lobo, por sinal muito amigo da família.
Foi um grande compositor para a época e deixou a sua marca. De onde veio o gosto pela música?
Andava no Seminário e tinha muitas dificuldades em aprender o francês, e em vez de ir às aulas de música, ficava no quarto a estudar. Até que o cónego Albino me interpelou pela ausência e eu justifiquei-a com o facto de não ter voz. Respondeu-me: “Voz até os cães têm!”. Aquelas palavras sacudiram-me e fizeram juntar ao grupo coral, tornando-me primeiro tenor.
A composição de músicas aprendi-a com seminaristas mais velhos, mas as composições a sério só as comecei a partir dos 18 anos. Hoje posso dizer que a música foi o grande auxiliar da pregação: ao cantar, os homens e as mulheres gravavam a mensagem de Deus, e gostavam do que ouviam. Recordo-me de fazer missões em Guimarães, Lisboa, Leiria (Caranguejeira e Monte Redondo) e na diocese, e posteriormente encontrar em Cadima pessoas que, tendo participado nesses encontros, aqui vinham propositadamente só para me ouvir.
No concelho, recordo-me de em 1953 a banda de Covões tocar toda uma Semana Santa na Palhaça, paga pelos emigrantes americanos, para a qual eu compus todas as músicas, e que ainda hoje são tocadas. Mas naquela altura não havia policopiadores, os cânticos eram todos feitos à mão, via-me à rasca… dava-os aos padres nos retiros em Fátima, para depois divulgarem. Por isso perdi muito do material que criei.
Um facto que a maioria desconhece é que foi o padre Rumor quem introduziu em Portugal a música “Parabéns a você”.
É verdade. Foi em 1957, quando viajava no Vera Cruz. Lá encontrei uma revista intitulada “O Cruzeiro”, onde estava a canção “Happy Birthday to You”. Uns primos meus de Santos, no Brasil, traduziram a letra, e eu, chegado a Lisboa, casualmente deixei a música na sacristia da igreja de São Roque, sem que ninguém soubesse que era minha. O certo é que a música ganhou fama ao ser difundida na Emissora Nacional, perdurando até hoje.
Levou uma vida fundamentalmente dedicada aos pobres, e a sua “Obra” é prova disso.
Quando eu vim para Cadima deparei-me aqui e na região com muita pobreza e muito abandono de crianças. Os pais tinham de trabalhar e os mais novos ficavam fechados em casa, mas alguns acabam por sair e fugir. Naquele tempo as crianças morriam muito porque eram roídas pelos animais, ou porque ficavam fechadas ou embriagadas… Em 1947, fui fazer um retiro à rua das Amoreiras (Lisboa), na Obra do Amparo à Criança, e em troca facultaram-me três irmãs para começarmos a fazer em Cadima uma Obra para guardar as crianças.
Esta casa de abrigo foi dada pelo cónego Manuel Gonçalves Salvador, que perdoou uma dívida a um irmão caso ele doasse a casa à Obra dos Pobres. E assim começou: os pais que não tinham posses para criar os filhos deixavam-nos na nossa instituição, e chegámos a ter sob a nossa guarda cerca de 100 crianças de todo o país.
Ao início, tínhamos rapazes e raparigas; depois, quando a Obra se transformou em internato, ficámos só com meninas, que estavam ao cuidado de 12 irmãs. Iam à escola, ficavam no dormitório e aprendiam os trabalhos de mão, especialmente o ponto cruz; depois empregavam-se e saíam para casar. As que tinham mais capacidades continuaram os estudos, e foi para isso que comprei a casa em Coimbra, para elas poderem estudar e terem um sítio onde ficar a viver.
A superiora, a “mãe Margarida”, como era conhecida, tinha um feitio especial e nunca largou a chefia; eu, como pároco, fiquei com a formação das irmãs e com a angariação de fundos para a Obra. Saliento que a Igreja nunca aqui gastou dinheiro: este foi sempre dado por pessoas da freguesia e do resto do país. Também angariávamos alguns fundos com as ofertas às irmãs ou com os donativos que vinham dos retiros, das missões e das pregações.
Porquê essa ligação com as crianças?
Os adultos governavam-se como podiam, mas as crianças ficavam abandonadas nas suas casas, sem defesas. Além de uma preocupação religiosa, era também uma preocupação humana, para permitir que pudessem singrar na vida.
Também teve uma preocupação especial pelas vocações…
Levei até ao sacerdócio 14 padres através dos seminários de Coimbra, Aveiro, Lisboa e Porto e 12 irmãs, algumas das quais ainda estão vivas. Destas algumas passaram da Obra do Amparo à Criança para as Irmãzinhas da Assunção, dedicando-se aos operários. Na paróquia também apoiei e estimulei vocações para a Congregação do Amor de Deus, Congregação da Sagrada Família e Congregação Jesus, Maria e José.
Também fui, juntamente com o padre Jaime Cunha, de Coimbra, e o padre Amaral, de Aveiro, um dos grandes pioneiros da catequese, já que os primeiros catecismos nacionais são obra nossa.
Muitos paroquianos consideram-no um padre demasiado exigente. Concorda com essa visão?
Tinha essa fama, mas sempre pensei assim: aquilo que é, é; aquilo que não é, não é. Sempre fui rigoroso e também era exigente comigo próprio. Recebia aquilo que estava nas tabelas diocesanas e nunca saía daí.
O dinheiro empregava-o na paróquia, na Obra dos Pobres e na formação das moças, que tinham de pagar os livros e a escola. A minha família, que ainda hoje me ajuda, nunca recebeu nada. Tudo o que consegui angariar foi sempre em benefício dos outros, nunca para mim. Claro que guardava alguma coisa para o dia de amanhã, mas nunca acumulava para mim. As pessoas sabem que nunca gastei em coisas desnecessárias, e isso está à vista.
Também houve alguma polémica na freguesia com a atribuição do seu nome a uma rua que já tinha o nome do padre Mário Brito. O que pensa dessa questão?
A rua está consagrada ao padre Brito e está muito bem assim. A minha opinião é de que não deve mudar, até porque foi uma homenagem ao fundador da Boa Nova.
Não me importo nada com o nome da rua, acho isso uma vaidade. O que realmente interessa é ser útil ao próximo; o que pudermos fazer pelo próximo é que traz a verdadeira paz espiritual e temporal.