José Eduardo R. Coutinho
O antiquíssimo costume de colocar apropriados vasos de iluminação, nas sepulturas, foi comum a todos os povos da Antiguidade, pelo que muitos estudiosos viram esta prática, também seguida pelos cristãos, como uma influência, ou, imitação do paganismo, já cultor de válidos princípios éticos e morais, sintetizados no pensamento ciceroniano: virtus lucet in tenebris.
A verdade, todavia, é que os fiéis receberam-na da tradição judaica, e, para este hábito, como para o anterior, os referidos objectos eram o símbolo da luz eterna, que a Igreja implora, em favor dos defuntos, e, mais ainda, da glória que os Santos gozam, no seio de Deus, após ter-lhes brilhado, na própria vida terrena, os esplêndidos fulgores da fé, assevera São Jerónimo: Ad significandum lumine fidei illustratos sanctos decessisse, et modo in superna patria lumine gloriae splendere (Adversus Vigilantius).
Eles lembram, simultaneamente, a promessa do Salvador: os justos resplandecerão como o Sol, no reino de seu Pai (Mt 13, 43), porquanto alguns crentes gostavam de exprimir, nos epitáfios, sob distintas fórmulas variadas, as esperanças que a mencionada declaração fez aparecer, visto aquela luz ser uma das principais componentes da bem-aventurança eterna e traduzir a identidade de Cristo, segundo diz um desses textos: LVCE NOVA FRVERIS LVX TIBI CHRISTVS ADEST.
Isso faz supor, evidentemente, que certa percentagem das lucernas, integrantes de colecções museológicas europeias, tivera uma função funerária, comprovada pelos consecutivos achados arqueológicos, provenientes das catacumbas de Roma, de Nápoles e de Corneto, feitas de argila e colocadas junto do cadáver, enterradas ao lado do defunto, ou, deixadas à superfície, no loculus, caracterizando uma época mais recente, face às primitivas, em bronze, para suspender por finas correntes metálicas.
Um considerável número destes interessantes utensílios, encontrados naqueles lugares, estavam pousados em pequenos nichos e nas consolas, em diminutas saliências, dispostas ao longo das paredes dos corredores, pelo que recebiam o nome designativo, a partir do verbo luceo, a fim de fornecerem a necessária claridade aos fiéis, que frequentavam aquela obscuridade subterrânea, tão privada de qualquer luz natural.
As que pertencem à última categoria enumerada são desprovidas de particularizações estéticas e científicas, que reclamem um inerente tratamento especial, pois, configuram uma tipologia bastante divulgada, nas congéneres, apesar de testemunharem, por motivos de proveniência e do uso que tiveram, um interesse cultural e piedoso, bem como por terem símbolos análogos aos gravados nas pedras sepulcrais e nos sarcófagos, cujos principais são: a palma, o cordeiro, a coroa, o peixe, a pomba, o monograma de Cristo, o A e o W. As lucernas cristãs, que aparecem na Lusitânia, pouco diferem das anteriormente descritas, embora sejam menos frequentes e os tipos de maior realce surjam raramente.
Ora, o exemplar determinante desta notícia está íntegro, completo e foi recolhido, há décadas, de uma sepultura, delimitada por blocos de calcário, afeiçoados, de reduzidas dimensões e cobertos por lajes delgadas, facto que contribuiu para permitir a rara preservação da peça, procedente da provável jurisdição territorial da veneranda paróquia de Conímbriga, na área meridional, tendo sido adquirida por um ilustre médico que, recentemente, fornecera indicações acerca do achado e a disponibilizou, por venda.
Este tipo de lucernas, com motivos paleocristãos, é característico do século IV e distinto de todos os demais, quer pela decoração, quer pela forma e pelo fabrico. Tendo derivado das lucernas de canal, a própria variante mais tardia (tipo Dressel-Lamboglia, 5D) desenvolveu a directa tendência evolutiva, para um corpo volumoso e periforme, achatado.
O disco é circular, côncavo, prolongado por um canal largo; a orla é rebaixada, de dorso convexo, apresentando decoração relevada, constituída por motivos geometrizantes, repetidos, e finos perolados. Tem dois orifícios, largos e simetricamente dispostos, para alimentação do reservatório, com o Crismon, centrado e relevado, enquadrado pelos mesmos elementos geometrizantes.
A asa ficara reduzida à pegadeira, maciça, em forma de apêndice triangular (tipo Ponsich, 9), ligeiramente curvado, na parte superior, dotada de um sulco longitudinal, prolongado até à base, contornando-a, a qual possui um grosso anel, pouco saliente; in planta pedis, uma palmeta, relevada.
É moldada em argila vermelho-tijolo, cuja qualidade e natureza de fabrico são as mesmas da sigillata clara D, sua contemporânea, até pelo revestimento a engobe, vermelho-alaranjado. No bico, oblongo e à plena largura do canal, conserva vestígios de negro de fumo, da combustão do azeite, na torcida. Existe paralelo numa das ruínas de Conímbriga, exposta no Museu Monográfico. Tem 4 cm de altura, 11,5 de comprimento e 7 de largura.