A 11 deste mês, ficou concluída a inventariação da paróquia de Quiaios, realizada com a constante presença do pároco, Padre Carlos Augusto Noronha Lopes, e do senhor Armando Ferreira Redentor, a qual contabiliza um total de 97 fichas, bem como um elevado número de fotografias, inerentes ao espólio artístico-cultural da igreja matriz e das capelas.
Esta porção territorial – apesar de participar do remoto povoamento pré-histórico, comum às cercanias da serra da Boa Viagem, que entesta, num assinalável realce da cultura dolménica e da castreja – está exemplarmente documentada no segundo mais antigo diploma referente ao actual espaço português, um pergaminho autógrafo, consignado em escrita visigótica cursiva e datado de 21/22 de Fevereiro de 897, proveniente do mosteiro de Pedroso e atinente à fundação da várias igrejas, de entre Douro e Vouga.
Incluindo várias outras, até à bacia do Mondego, elencadas a fim de constituírem, também, um auto de partilhas, aí vem mencionado:de uilla quiaios IIIIª integra cum aiuncionibus suis et mediedate (sic)de eclesia uocabulo sancti mamete que in ipsa uilla fundata est (P. M.H., Diplomata et Chartae, XII).
Ora, o sentido territorial da exploração agrária, primitiva, é, logo, designado pelo topónimo, de remota origem, obscuro no sentido e caso raro de vocábulos com cinco vogais seguidas. Além disso, a explícita referência à já edificada igreja própria, cujo nome do orago figura, São Mamede, traduz a recuada implantação de uma considerável comunidade cristã, por certo ali estabelecida desde que, há vinte anos antes, Afonso III, de Leão, procedera à reconquista do vasto distrito conimbricense, até então dominado pelos muçulmanos.
Um outro dado, bastante significativo, provém do titular, martirizado ao tempo do imperador Aureliano (170-175), em Cesareia da Capadócia, e detentor de culto muito antigo, na Península, o qual consta nos calendários moçárabes, com festa litúrgica em 16 de Julho, ou 7 de Agosto, consoante as duas principais tradições, e deveras ligado à pastorícia que, juntamente com os intensos trabalhos agrícolas, alguma pesca e a exploração do sal marinho, justifica o poliedro de actividades praticadas naquela circunscrição dominial.
Bem claro aparece o historial da sobredita villa rústica, pertencente ao grande barão portucalense Gondesindo, ou, Gosendo Eris, casado com Dona Enderquina Mendes (Pala, por alcunha), aparentada com a casa reinante de Leão, por ser filha do célebre conde, ou dux, Mem Guterres e de Dona Ermesinda, irmã da rainha Dona Elvira.
Com efeito, só em 878 é que o território de Coimbra e Montemor foi conquistado aos mouros, por Ermenegildo Mendes, filho de Mem Guterres, sendo, assim, possível que este tivesse tomado de presúria, após o aludido feito, a villa Quiaios, da qual, depois, passasse, pelo menos, parte à filha, Dona Enderquina Mendes, ou Dona Pala.
De facto, já em 897, há muito havia falecido tal rica –dona; o viúvo, Dom Gosendo Eris fizera partição com o filho e filhas do casal, cabendo Quiaios, ao que parece, à filha Adosinda, que veio a ser tomada por um certo Ansur, isto é: raptada e rouçada (como se dizia) sine mea iussione, declara o próprio pai. Talvez, por isso, na faculdade conhecida do Código Visigótico, o pai viesse a deserdá-la, visto serem inexistentes os descendentes havidos do raptor, que morrera cedo, pois, antes da data deste diploma, Gosendo Eris deixava, ao mosteiro de São Cristovão de Sanguinhedo, na terra de Santa Maria – por ele fundado, por motivo dos receios da ira divina, que julgava ter-lhe sido manifestada, como aviso, no aleijão com que nascera a filha Froílhe, ou Froili – de uilla quiaios IIIIª integra cum aiuncionibus suis, quer dizer: a quarta parte da villa de Quiaios.
Faz sentido esta particularização, porquanto Gosendo Eris e Dona Enderquina tiveram um filho (Soeiro) e três filhas (Adosinda, Ermesinda e Froílhe). Partindo meo ganato et meas uillas et mea criazom, talvez tivesse distribuído a villa de Quiaios, na eventualidade de ser dono de toda ela, pelos vários herdeiros, e a quarta que o mesmo detinha seria o quinhão de Dona Adosinda.
Graves danos terá sofrido a região, quando das campanhas de Almançor, a partir de Dezembro de 987, visto que a documentação do século XI a revela um tanto selvática, porém, o grande barão maiato, Dom Gonçalo Testamires, recuperou-a, em Outubro de 1084, tendo principiado o repovoamento, que só ganhara dimensão com a política organizativa do Alvazir Dom Sesnando, após Julho de 1064.
Há, no tempo deste notável governador de Coimbra, um considerável desenvolvimento de Quiaios, a ponto de Dona Teresa, mais tarde, querendo recompensar os serviços do intrometido amante, Fernando Peres de Trava, lha doara, com os castelos de Soure e de Santa Olaia, cujos senhorios perdera, no seguimento dos acontecimentos nacionais, de 1127-1128.
Já no mês de Novembro de 1134, Paio Guterres e mulher cedem, ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, metade da vila de Quiaios, da qual vendem metade, por 150 morabitinos, doando a outra metade, pela remissão dos pecados.
Logo no decurso de 1143, a outra parcela estava em poder de Dom Afonso Henriques que, em Junho desse ano, doa a metade e toda a de Lavos, ao mesmo Mosteiro de Santa Cruz, com o respectivo eclesiástico. Isso foi o factor determinante dos direitos de padroado crúzio no local, onde permanecia construída ou reedificada a igreja de São Mamede que, respeitando o sentido devocional dos fiéis, mas, orientando-o convenientemente, a fizera passar da condição de igreja própria à de colação, ou, paroquial.
Manifestando plena solicitude pelo crescimento orgânico do Mosteiro, repetidamente presenteado com numerosas ofertas do primeiro soberano português, os documentos pontifícios surgem a confirmar as dádivas recebidas, entre as quais constam a villa e a igreja de Quiaios, sucessivamente incluídas nos textos das bulas Ad hoc universalis, de Lúcio II, de 30 de Abril de 1144, Apostolice sedis, de Eugénio III, de 9 de Setembro de 1148, Ad hoc universalis, de Adriano IV, de 8 de Agosto de 1157, e a do mesmo título, de Alexandre III, de 16 de Agosto de 1163.
No censual diocesano, de finais do século XIV, está listada e referida na categoria das que pagavam a colheita, o foro devido ao Bispo, na ocasião da visita pastoral, efectuada uma vez ao ano, prestado em géneros, ou, em moeda de metal nobre.
Pelos finais do século XVII, a sede paroquial deixou a velha matriz, situada no local do actual cemitério, vindo valorizar a planície do povoado, ao aproveitar uma qualificada ermida, para capela-mor, sendo a nave construída de raiz, recebendo a pia baptismal e o património tido anteriormente, identificativo da comunidade dos fiéis e acumulado a partir de então.
Qualificado, de maneira bastante sugestiva, realça obras escultóricas, em calcário, dos séculos XV ao XVII; de terracota e de madeira, seiscentistas e setecentistas; paramentos, pinturas e ourivesaria coevos à remodelação paroquial, complementada pelos exemplares de livro antigo, em missais de altar; e de variadíssimas peças, recentemente recebidas do Museu Santos Rocha, a cuja guarda haviam estado entregues e que, nesta oportunidade, foram devolvidas ao legítimo proprietário, a paróquia.
Realmente, tal facto é devido à singular acção do novo pároco – quer pela lucidez, quer pelo equilibrado sentido estético-celebrativo – que, de maneira ímpar, sabe incutir à liturgia comunitária, ao corpo de bem formados acólitos e ao requintado esmero concedido à Eucaristia e demais sacramentos, em que a distinta apresentação, a música e o canto, e o envolvente decorrer dos actos sagrados, vai criando verdadeiros ambientes de acolhimento integrado, de enlevo orante e de participação personalizada, nestes magníficos enquadramentos, vitalizantes e dignificadores, os autênticos modelos de uma aferida sensibilidade religiosa, prestigiante e promovedora da melhor pedagogia da fé.
José Eduardo Reis Coutinho