Fé e Compromisso
TRABALHO AO SERVIÇO DA PESSOA
José Dias da Silva
Primeiro de Maio, dia do trabalhador, devia ser um dia de festa. Contudo, as actuais condições são muito pouco propícias a grandes manifestações de alegria.
As profundas mudanças a que assistimos têm consequências extremamente negativas também para os trabalhadores. A situação torna-se mais difícil porque os principais agentes, trabalhadores, sindicatos, patrões e governos, não têm tido capacidade para abordar adequadamente o problema, pois parecem não ter tomado consciência de que a concepção e, portanto, a natureza do trabalho se alteraram radicalmente nestas últimas duas ou três décadas. E um problema mal colocado só pode ter soluções desajustadas.
Não vale a pena iludirmo-nos e agarrarmo-nos à nostalgia de um passado caracterizado por um emprego estável e para toda a vida, estruturante da vida pessoal e social. Hoje vivemos uma situação de insegurança, mesmo para aqueles que aparentemente têm um emprego estável. Efectivamente passou-se da estabilidade para a precariedade e não adiantará muito viver na ilusão de uma nova era de pleno emprego. Até porque a fronteira entre trabalho e exclusão é muito fluida e até acontece ter trabalho e estar numa situação de pobreza: em Portugal, 40 por cento das famílias pobres são famílias de pessoas empregadas. Efectivamente hoje "sair do desemprego não significa sair do espaço da precarização vital. Antes pelo contrário. O desemprego começa a fazer parte de uma zona cinzenta, de um território de vulnerabilidade laboral e vital, de modo que se sai do desemprego com relativa facilidade mas para voltar à mesma situação ao fim de pouco tempo depois de ter passado por um ou vários empregos precários " (I. Zubero). Esta situação de emprego precário levou já a OIT a introduzir um novo conceito: "trabalho decente" ou "trabalho digno" (decent work): já não basta criar postos de trabalho; é preciso que eles tenham uma qualidade de acordo com a dignidade da pessoa que trabalha. Hoje a precariedade laboral gera também precariedade vital.
A dificuldade está em querermos resolver este problema com soluções já ultrapassadas. É um erro esquecer a realidade, mesmo que ela seja muito dolorosa. Seja de quem for a culpa, a verdade é que a história vai avançando e, certamente, por culpa de todos nós, deixámos que ela avançasse sem controlo ou, pior ainda, sob o controlo dos interesses de um novo capitalismo selvagem para quem as pessoas apenas contam na medida em que lhes podem ser úteis.
Não basta acusar a globalização (económica). É preciso perceber que temos de mudar de paradigma, de mentalidade, de soluções. Não vale a pena pôr vinho novo (as novas condições) em odres velhos (as velhas soluções) que acabarão por rebentar sem benefício para ninguém.
Há já soluções propostas ou em experiência, como a economia social, a economia baseada no conhecimento ou o trabalho "a meia semana" (que implica ter duas pessoas para o mesmo posto de trabalho, por cada dia completo, e ter dois tempos para a mesma pessoa: um para «trabalhar» e outro para «amar e cuidar do outro"). Pode também implementar-se a reorganização dos transportes e redistribuição dos equipamentos sociais. Mas, perante a profundidade da mudança, há sobretudo que mudar as mentalidades.
É urgente interiorizar que o trabalho está, tem de estar, sempre ao serviço da pessoa, como diz João Paulo II: "O trabalho é ‘para o homem’ e não o homem ‘para o trabalho’. Cada trabalho mede-se sobretudo pelo padrão da dignidade do sujeito do trabalho, isto é, da pessoa, do homem que o executa". Isto é, "a finalidade do trabalho, de todo o trabalho realizado pelo homem permanece sempre o próprio homem" (LE 6). O que é o contrário da prática corrente.
Temos que alargar o conceito de trabalho: de gerador de riqueza a socialmente útil. Mas esta mudança implica profundas alterações nas políticas sociais: as soluções tradicionais perderam a sua validade e é preciso inventar outras com uma lógica radicalmente diferente das actuais. É preciso também que a flexibilidade laboral, que veio para ficar, seja uma flexibilidade sustentável de modo a combater não só a precariedade laboral, mas sobretudo a prevenir a precariedade vital que lhe está geralmente associada.
Ligada a esta conversão está outra não menos complicada: a de perceber que a pessoa não pode ser olhada apenas como trabalhador. Mais: antes de ser trabalhador, a pessoa é cidadão, isto é, membro de uma comunidade. Ora os direitos associados à cidadania não podem estar subordinados aos interesses do mercado. Na lógica divina, proposta pelo Antigo Testamento, cada pessoa, independentemente de estar ou não a trabalhar, tem também direito, "apenas" pelo facto de pertencer a uma comunidade, aos recursos e dons dessa comunidade, por força do princípio do destino universal dos bens: o homem-trabalhador deve dar lugar ao homem-cidadão. Por isso, cada pessoa, independentemente de estar a trabalhar, ter trabalhado ou não ter trabalho, tem direito, por ser pessoa, ao mínimo para poder viver com dignidade.
Para quem é tão conservador nos hábitos e interesses, como nós, tais mudanças são quase insuportáveis. O pior é que a história não vai parar à nossa espera. E nenhum de nós está livre das teias do desemprego e da pobreza. Nisto a história é muito mais democrática que nós.