A REBELIÃO DOS CRISTÃOS
José Dias da Silva
Na sua passagem por Fátima, o cardeal Bertone, falou de uma urgente rebelião dos cristãos. Trata-se de uma expressão rara na boca de um cardeal, que, para evitar mal entendidos, acrescenta alguns critérios: "respeitando as regras de uma sociedade autenticamente democrática"; "com a audácia dos apóstolos" e "sem negar o valor dos sacrifícios e penitências voluntárias, a penitência de Fátima é a aceitação a penitência de Fátima é a aceitação submissa da vontade de Deus a nosso respeito, que se traduz nos nossos deveres".
O Cardeal não se alongou na definição do que são os nossos deveres, mas ao referenciou-os à vontade de Deus e com isso disse tudo.
No mundo de hoje, realmente os cristãos parecem desaparecidos. Alguns aparecem para a assinatura num abaixo-assinado ou numa petição. Muitos vão à missa dominical. Outros fazem o seu voluntariado na catequese, na liturgia ou no serviço aos irmãos mais carenciados.
Mas o cardeal Bertone apontava para mais longe. Teria presentes as palavras de Paulo VI: "atingir pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade". Ou as de João Paulo II: "É hora de propor de novo a todos, com convicção, esta medida alta’ da vida cristã comum" que é o Sermão da Montanha. Ou as mais recentes de Bento XVI, ao recordar que, com a sua visão cristã da sociedade, baseada no primado da "pessoa enquanto tal, inclusive do escravo e do pobre", S. João Crisóstomo corrige "a tradicional visão da ‘pólis’ grega, na qual amplas camadas da população ficavam excluídas dos direitos de cidadania, enquanto na cidade cristã, todos são irmãos e irmãs com os mesmos direitos".
É este desafio que os cristãos são chamados a assumir publicamente, cumprindo os seus deveres, isto é, cada um no lugar e nas responsabilidades que tem na sociedade. E devem fazê-lo com a audácia dos apóstolos, sem medo e do modo propositivo, estando na crista da onda da mudança e não à defesa, temerosos, incapazes sequer de reagir, quanto mais de agir.
Para que esta posição de liderança, que nunca poderá ser uma imposição mas sim uma apresentação tão sedutora que seja difícil resistir-lhe, precisamos primeiro que tudo de viver de modo evangélico a nossa vida, testemunhando coerentemente aquilo em que acreditamos.
Dos vários obstáculos que temos de ultrapassar apontaria três.
O primeiro prende-se com o nosso analfabetismo religioso: o que é ser Igreja hoje, como viver o ser cristão num mundo plural e em contínua mudança (onde está a nossa catequese conciliar?) e, sobretudo, quem é Jesus Cristo, quem é o Deus em quem dizemos acreditar, quais os seus atributos estruturantes, aqueles que devem informar toda a nossa vida? Responderá a nossa catequese a estas questões? Mas mais, como estão a ser preparados os cristãos para viver evangelicamente o seu compromisso partidário, sindical, empresarial, de juízes, de advogados, de polícias, de motoristas de transportes públicos, de autarcas, de deputados? É que é através destas pessoas que o projecto cristão pode ser levado, como fermento, sal e luz, ao mundo. Quem e como, dentro da Igreja, ajuda a ler os sinais dos tempos? Onde estão, por exemplo, os gabinetes de estudos sócio-teológico-pastorais? Testemunhar os valores do Reino no mundo é a primeira prioridade ou não? É urgente responder a esta questão e actuar coerentemente.
Um segundo obstáculo vem da privatização da fé. Não só da privatização que o cardeal Bertone condenava ("O cristianismo deve ter relevância pública, mesmo quando é minoritário"), mas sobretudo da privatização que os próprios cristãos fazem da sua fé. Não apreendemos ainda ou não queremos assumir todos os aspectos sociais que estão subjacentes à liturgia. Por exemplo, todos os cristãos estão conscientes de que "a Eucaristia impele todo o que acredita nele (Jesus) a fazer-se ‘pão repartido’ para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno" (SacC 88). E já todos interiorizámos que a evangelização tem como dimensão constitutiva a luta pela justiça (Sínodo de 1971)?
O terceiro obstáculo tem a ver com uma espécie de esquizofrenia para que os leigos se sentem empurrados: são instados a ser activos e interventivos no mundo, nos vários âmbitos da vida; mas dentro da Igreja, apesar das repetidas referências a comunhão, corresponsabilidade, participação consciente, as esferas de decisão, de discernimento e de planificação são uma espécie de "santo dos santos" e os espaços de diálogo, apesar dos Conselho pastorais, têm pouco de diálogo (especialmente por culpa dos leigos) e quando o têm é muitas vezes sobre assuntos laterais, inócuos e pouco centrados na realidade social e eclesial. Um pequeno teste: quem sabe do Conselho pastoral diocesano ou paroquial e conhece as suas decisões? Por outro lado, pressente-se uma desconfiança sobre a actuação dos leigos: o seu complexo de inferioridade (onde está a nossa consciência baptismal?) é alimentado por atitudes (inconscientes?) de poder e até de desconsideração dos leigos por parte da hierarquia.
Uma rebelião evangélica dos cristãos nunca pode ser um mero exercício de voluntarismo. No mínimo implica a passagem de uma pastoral de manutenção a uma pastoral missionária.
Estarão clero, religiosos e leigos dispostos a mudar de vida para que tal passagem aconteça?