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29 de fevereiro de 2008

ESMOLA, UM GESTO DEGRADANTE OU LIBERTADOR?

José Dias da Silva

Na Mensagem quaresmal deste ano, Bento XVI procura recuperar o sentido original da esmola. Bem preciso é, pois a esmola é mais uma dessas palavras ou gestos que fomos deixando degradar ao longo dos séculos. E a lista, se não é longa em quantidade, é forte em conteúdo, como dois ou três exemplos bastarão para demonstrar: próximo, uma das concepções radicais da revelação cristã, é uma palavra a minimizar pois está ligada a partilha, atenção ao outro, exigência de amor oblativo, coisas perigosíssimas para quem quer levar uma vida sossegadinha; caridade, uma atitude estruturante do ser cristão, reduziu-se a uma triste "esmolinha pró ceguinho"; o ofertório da missa, inicialmente dedicado a evitar que houvesse pobres na comunidade, esgota-se (e parece que já não chega) no culto, nos seus ministros e sobretudo nos seus edifícios; o lava-pés, um gesto forte para recordar a exigência do amor e do serviço aos mais pobres, transformou-se num ritual "folclórico" da semana santa; e até o Pai-Nosso, esta oração divina e síntese profunda do que é ser cristão, é hoje, para a grande maioria dos cristãos, uma espécie de "cassete" que repetimos sem reparar no que dizemos nem sobretudo no que nos comprometemos: repare-se na violência do "perdoa-nos como nós perdoamos". O que aconteceria se Deus levasse a sério este nosso pedido!?
Para Bento XVI a esmola é "uma forma concreta de socorrer quem se encontra em necessidade e, ao mesmo tempo, uma prática ascética para se libertar da afeição aos bens terrenos" e um dos "meios através dos quais o Senhor chama cada um de nós a fazer-se intermediário da sua providência junto do próximo".
Não se trata nem de um exercício de filantropia ou de auto-satisfação, pois "se, ao praticarmos uma boa acção, não tivermos como finalidade a glória de Deus e o verdadeiro bem dos irmãos, mas visarmos antes uma compensação de interesse pessoal ou simplesmente de louvor, colocamo-nos fora da lógica evangélica" e recusamos perceber a caridade como "virtude teologal que exige a conversão interior ao amor de Deus e dos irmãos, à imitação de Jesus Cristo, que, ao morrer na cruz, Se entregou totalmente por nós".
É, pois necessário que o nosso "olhar" sobre o homem se assemelhe ao olhar misericordioso de Cristo, movido pela compaixão dos que sofrem. Aliás, a palavra esmola vem de uma palavra grega que significa "compaixão, misericórdia". Por isso, como dizia o secretário do Conselho Pontifício «Cor Unum», «os terríveis desafios da pobreza de grande parte da humanidade, da indiferença e do fechar-se no próprio egoísmo aparecem como um contraste intolerável frente ao "olhar" de Cristo. O jejum e a esmola, que junto com a oração, a Igreja propõe de modo especial no período da Quaresma, são uma ocasião propícia para nos conformarmos com esse "olhar"».
A esmola era efectivamente para os cristãos dos primeiros séculos algo essencial. Isto era logo evidente, pois, como recorda o papa, a esmola perdoa os pecados. Esta afirmação aparece em quase todos os chamados "Padres da Igreja" (séc. II a VIII), embora, pelo menos um deles, acrescente: "A esmola apaga os pecados passados, mas não os apaga se pecas confiando que, por meio dela, te serão perdoados". Devo confessar a estranheza com que li a primeira vez um texto de Orígenes que, ao enumerar as "sete maneiras de perdoar pecados" (o Baptismo; o sofrimento do martírio; a esmola; o perdoar os pecados aos nossos irmãos; a conversão de um pecador; a abundância da caridade; a penitência) não referia a passagem do Evangelho, tão citada nos séculos futuros: "Tudo o que ligardes na terra será ligado no céu" (Mt 16,19).
Podia ainda acrescentar outros rasgados elogios: a esmola converte-nos em sacerdotes de Cristo, é a arte mais elevada, é a maior das virtudes. E, afirmação curiosa para a época, é até superior à virgindade, porque "a virgindade sem a esmola não foi capaz de levar as virgens loucas até à própria porta da câmara nupcial; a esmola, contudo, sem a virgindade, leva os que a praticam, entre grandes loas, até ao reino que lhes está preparado desde a criação do mundo".
Mas não podia terminar sem fazer uma referência aos quantitativos propostos pelos Padres. Embora muitos deixem isso ao critério de cada um, São João Crisóstomo fala em… 10%: "Pois não é muito o que peço: apenas o que davam os judeus, que eram pouco sensatos e estavam cheios de males, isso devemos fazer nós, que aguardamos o reino dos céus. Isto não é uma lei nem proíbo que se dê mais; o que não me parece justo é que se dê menos do que a décima parte. Fazei isto não só quando vendeis, mas também quando comprais". S.to Agostinho, embora fale várias vezes nos 10%, vai mais longe: "devemos superar a justiça dos escribas e dos fariseus (Mt 5,20); assim, como estes davam o dízimo, nós devemos dar metade dos próprios bens, como Zaqueu (Lc 19,18), ou duplicar o dízimo e assim superar os fariseus".
Como parece pálida a reprimenda do Papa aos cristãos (alguém deu por este puxão de orelhas?): "Este apelo à partilha ressoa, com maior eloquência, nos países cuja população é composta, na sua maioria, por cristãos, porque é ainda mais grave a sua responsabilidade face às multidões que penam na indigência e no abandono. Socorrê-las é um dever de justiça, ainda antes de ser um gesto de caridade".
Realmente nós somos de uma outra religião, muito afastada da dos Padres da Igreja!

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