Fé e Compromisso
A DUAS VELOCIDADES
José Dias da Silva
Tive oportunidade de participar, embora parcialmente, em dois espaços de reflexão. Um, dedicado às relações entre cristianismo e islamismo, abordou várias e complexas questões que, caso não sejam resolvidas no respeito pela dignidade das pessoas e dos povos, desaguarão em problemas muito graves para o futuro imediato e deixarão as próximas gerações em situação muito difícil. O outro debruçou-se sobre graves problemas que já hoje atingem, mesmo em Portugal, milhões de pessoas. Organizado pela Comissão Nacional Justiça e Paz, analisou a problemática da pobreza no contexto do desenvolvimento e os números apontados foram verdadeiramente dramáticos sobretudo para quem percebe que por detrás de cada um daqueles frios números está uma pessoa concreta e situada, com as suas alegrias e tristezas, esperanças e angústias.
Vim de lá preocupado com a gravidade da situação, sobretudo porque muitas das denúncias feitas e das questões levantadas já foram publicitadas, talvez não da melhor maneira, mas são sobejamente conhecidas.
Estou a referir tudo isto porque, saído destas câmaras de reflexão e sensibilização, verifiquei um contraste enorme com as preocupações correntes que vimos, ouvimos e lemos. Quais são as grandes questões do nosso Pais, ou, pelo menos, as que preocupam a opinião pública? Há questões mais jocosas que sérias: a proclamação oficial de que o sul do Tejo é um deserto; os supostos comportamentos estalinistas de Marques Mendes; a questão de saber se Sócrates é engenheiro ou engenheiro técnico; a data das eleições para Lisboa cuja escolha terá sido para favorecer o PS, tramar os independentes ou não atrasar a governação de um câmara cuja situação parece mais do que lastimosas; ou a pítica questão de saber se a greve foi geral ou parcial.
Há questões sérias que se tornaram jocosas, mas que não têm graça nenhuma: a zelosa directora que castigou um contador de anedotas sem sabermos se o fez para cair nas boas graças do patrão, por dever de consciência profissional ou simplesmente porque não gosta de anedotas; ou a telenovela da Ota. Este assunto tem-se apresentado segundo um esquema muito nosso e que se caracteriza por um ciclo em quatro actos. Primeiro acto destaca a bondade do projecto: 30 anos de estudos acabaram por apontar a Ota; sucessivos governos de cores diferentes aprovaram a ideia; gastaram-se muitos milhões em preâmbulos. Segundo acto refere-se ao tempo de decisão: o governo, de acordo com esta avaliação, toma a decisão de actuar. Terceiro acto implementa a recusa: um político, que antes aprovara pelo menos pelo silêncio, argumenta, agora, com as dúvidas surgidas nos jornais ("vem no jornal; logo, é indiscutível" era um dogma que há meio século eu já ouvia na minha aldeia; na altura o jornal era O Amigo do Povo); multiplicam-se estudos, análises científicas, artigos de opinião, lobbies orquestrados para um lado e para outro. Quarto acto aponta para novo período de reflexão: vamos voltar aos estudos, definir os critérios políticos, fazer debates, ouvir a opinião pública, interrogar os técnicos. Quinto acto: depois de tudo bem estudado, debatido, aprovado, vamos reiniciar o ciclo, voltando ao Primeiro acto, pois sempre haverá um outro hipotético lugar que não foi considerado, sempre surgirá um estudo técnico que contestará a solução encontrada. É que, de um modo geral, os estudos técnicos servem não tanto para analisar objectivamente a realidade, mas muito mais para fundamentar uma opinião pré-definida. Na II guerra mundial nasceu o famoso slogan "A ciência é prostituta da guerra". Hoje ainda o é, só que os clientes aumentaram.
Mas há problemas sérios tratados seriamente embora de modo parcial. Refiro, por exemplo, o caso da menina inglesa desaparecida no Algarve. Trata-se de algo muito doloroso que cada pai ou mãe podem imaginar. Daí a importância que tem esta luta dos pais para que o assunto não caia no esquecimento. Tudo o que se ganhar nesta situação é ganho para futuras situações análogas.
Certamente que estamos todos solidários com os pais e com tudo o que se faça. Pena é que não tivéssemos esta mesma atitude com o Rui Pedro e a sua família. O drama foi o mesmo. As dores foram as mesmas. As angústias foram as mesmas. Só não foi a mesmo a mobilização policial. Não foi o mesmo apoio a uma família destroçada. E é pena que não aproveitemos agora esta onda de solidariedade (até porque as ondas tanto vêm como vão) com as crianças em dificuldades para agilizar a nossa legislação quanto à adopção, acabar com a potencial ditadura dos pais biológicos, acautelar expatriações idiotas, tendo como prioridade absoluta o bem da criança, de cada criança.
Pena é também que não tenhamos a mesma atitude para com os milhares de crianças que todos os dias morrem de fome (um bica chegaria para as salvar desta morte) ou de doenças perfeitamente evitáveis. Bastam apenas 5 dólares (de uma só vez e não 750 dólares por cada hora) para uma vacina e ter-se-ia salvo uma criança dando-lhe a oportunidade de vir a ser um adulto saudável e quem sabe um dos grandes vultos da história como um Mandela ou um Xanana.
Ouvi, na Conferência sobre a pobreza, que 40% dos nossos pobres são empregados e 30% são reformados, que continuamos com 2 milhões de pessoas pobres, que 47% das famílias portuguesas viveram pelo menos um ano em situação de pobreza nos últimos cinco anos. Números violentos? Não. "Apenas" milhões de pessoas violentadas na sua dignidade, privadas de qualidade de vida e excluídas da construção do futuro, do seu e do nosso.
É, portanto, tempo de nos preocuparmos com assuntos verdadeiramente sérios que afectam tanta gente neste país e por esse mundo fora, até porque todos sabemos que a luta contra a pobreza é um combate que se pode vencer, como se venceu a escravatura. Só precisa de vontade política. Só precisa de uma opinião pública que force governantes, forças económicas, organizações religiosas e cívicas e egoísmos pessoais a dar a máxima prioridade à dignidade da pessoa, de cada pessoa, tornando a nossa sociedade cada vez mais justa, mais solidária e mais humana.
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