Fé e Compromisso
ALGUMAS DIFICULDADES
José Dias da Silva
Gostaria de voltar à Nota Pastoral dos nossos Bispos. Não tanto para recordar a "resposta urgente" que se impõe de "criar ou reforçar estruturas de apoio eficaz e amigo às mulheres a braços com uma maternidade não desejada e que consideram impossível levar até ao seu termo" (4), mas para reflectir algumas dificuldades que se colocam à missão da Igreja que "tem, de ser, cada vez mais, pensada para um novo contexto da sociedade" (3).
"A Igreja respeita a consciência, o mais digno santuário da verdade. Não a ameaça, nem atemoriza, mas quer ajudar a esclarecê-la com a verdade, pois só assim poderá exprimir a sua dignidade" (3). Esta afirmação dos nossos Bispos aponta para um pressuposto – o de que (só) a Igreja possui a verdade – que dificulta o diálogo defendido pelo Concílio e caracterizado pela Ecclesiam suam de Paulo VI. O Concílio proclama a "justa autonomia das realidades terrestres" (GS 36) que "não são apenas meios para o fim último do homem, mas possuem valor próprio, que lhes vem de Deus" (AA 7), afirma que "pela fidelidade à consciência, os cristãos se unem aos outros homens para procurar a verdade e a solução justa de tantos problemas morais" (GS 16), reconhece que é "à luz do Evangelho e da experiência humana" que devem ser analisadas as questões "que afectam profundamente o género humano" (GS 46) e admite que nem sempre tem "uma solução concreta para todas as questões, mesmo graves" (GS 43). Paulo VI apresenta o diálogo como parte estruturante da missão da Igreja, já que tem como fundamento o diálogo de Deus com o Mundo (70), pelo que deve obedecer a algumas condições: ir sem esperar que nos chamem, com amor fervoroso e desinteressado, "sem limites nem cálculos", respeitando a liberdade pessoal e civil, sem coacção externa, mas apenas pela força da persuasão interior e atendendo "às lentidões da maturação psicológica e histórica" (71-77).
É numa atitude de humildade e de atenção amorosa ao mundo que a Igreja, qual samaritano, se coloca ao serviço da busca da verdade, pois vivemos num mundo secularizado, onde se cruzam muitas outras propostas. A Igreja, frente a estes desafios, deve reconhecer que não tem competência exclusiva no campo da normativa ética nem é a única justificação das opções morais válidas, o que pode obrigar, em determinadas circunstâncias, a pensar em duas "versões" dos valores morais (M. Vidal): uma para o interior da comunidade, que sempre terá de respeitar uma ética de máximos, o Sermão da Montanha; outra para o exterior, pois deve, dando o seu contributo insubstituível, enquadrar-se na ética de mínimos que regule a ordem social
Há uma segunda afirmação que queria destacar: "Aos católicos… convidamo-los a examinarem… as exigências de fidelidade à Igreja a que pertencem e às verdades fundamentais da sua doutrina" (3). Enquadrando-se esta afirmação no âmbito da moral, torna-se urgente um diálogo dentro da própria Igreja em que todos os fiéis sejam tratados como sujeitos, inseridos na história e construtores dessa mesma história. Hoje, muitos cristãos sentem que há não só uma excessiva dogmatização neste âmbito mas também um discurso mais próprio de séculos passados do que da realidade presente, carente de uma adequada iluminação (cf. GS 4) e particularemente quem têm de lidar com crianças e jovens. Esta tendência dogmatizante, num campo tão sensível às mudanças históricas, não deixa espaço suficiente para o contributo insubstituível que, concretamente os leigos, aqueles que mais são confrontados com as mudanças, são chamados a dar (cf. FC 5) e pode esquecer a recomendação de "aplicar as verdades eternas à condição mutável das coisas humanas e anunciá-las de modo conveniente aos homens nossos contemporâneos" (OT 16).
E se há "uma hierarquia das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente" (UR 11), também "a Igreja deveria proclamar uma hierarquia de verdades morais segundo a distância ao centro (da moral cristã) que é o amor" (G. Faus).
É que há cristãos que vivem angustiados com a carga de uma moral normativa que sentem desincarnada. E serão cada vez menos, se não houver capacidade para formar as consciências cristãs não apenas segundo normas e sanções (que pode facilmente transformar-se numa "pastoral do medo" ou da "culpabilidade") mas sobretudo segundo uma "ética de sentido", que nos aponte o rumo a privilegiar num tempo de permanentes mudanças e relativização de valores (privilegiando uma "pastoral da responsabilidade"). As palavras de Bento XVI, logo a abrir a sua primeira encíclica, são bem claras: "No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo" (DCE 1).
Como dizia alguém, "os católicos, quando entram na Igreja, são convidados a tirar o chapéu, não a cabeça". Se assim não for, continuará a haver muita dificuldade em transformar o "rebanho de Deus" em "Povo de Deus". E sem esta transformação, poderemos continuar a ter muitos fiéis, "cumpridores do preceito", mas sempre incapazes de assumir as responsabilidades que lhe cabem na missão da Igreja: "Reconhecendo quais são as exigências da fé e por ela robustecidos, não hesitem, quando for oportuno, em idear novas iniciativas e levá-las à realização. Compete à sua consciência previamente bem formada, imprimir a lei divina na vida da cidade terrestre… Esclarecidos pela sabedoria cristã e atendendo à doutrina do magistério, tomem por si mesmos as próprias responsabilidades" (GS 43).
É esta a distância entre católicos adultos e responsáveis ou católicos consumidores de serviços. A Igreja, que somos todos, deve decidir quais prefere.
"A Igreja respeita a consciência, o mais digno santuário da verdade. Não a ameaça, nem atemoriza, mas quer ajudar a esclarecê-la com a verdade, pois só assim poderá exprimir a sua dignidade" (3). Esta afirmação dos nossos Bispos aponta para um pressuposto – o de que (só) a Igreja possui a verdade – que dificulta o diálogo defendido pelo Concílio e caracterizado pela Ecclesiam suam de Paulo VI. O Concílio proclama a "justa autonomia das realidades terrestres" (GS 36) que "não são apenas meios para o fim último do homem, mas possuem valor próprio, que lhes vem de Deus" (AA 7), afirma que "pela fidelidade à consciência, os cristãos se unem aos outros homens para procurar a verdade e a solução justa de tantos problemas morais" (GS 16), reconhece que é "à luz do Evangelho e da experiência humana" que devem ser analisadas as questões "que afectam profundamente o género humano" (GS 46) e admite que nem sempre tem "uma solução concreta para todas as questões, mesmo graves" (GS 43). Paulo VI apresenta o diálogo como parte estruturante da missão da Igreja, já que tem como fundamento o diálogo de Deus com o Mundo (70), pelo que deve obedecer a algumas condições: ir sem esperar que nos chamem, com amor fervoroso e desinteressado, "sem limites nem cálculos", respeitando a liberdade pessoal e civil, sem coacção externa, mas apenas pela força da persuasão interior e atendendo "às lentidões da maturação psicológica e histórica" (71-77).
É numa atitude de humildade e de atenção amorosa ao mundo que a Igreja, qual samaritano, se coloca ao serviço da busca da verdade, pois vivemos num mundo secularizado, onde se cruzam muitas outras propostas. A Igreja, frente a estes desafios, deve reconhecer que não tem competência exclusiva no campo da normativa ética nem é a única justificação das opções morais válidas, o que pode obrigar, em determinadas circunstâncias, a pensar em duas "versões" dos valores morais (M. Vidal): uma para o interior da comunidade, que sempre terá de respeitar uma ética de máximos, o Sermão da Montanha; outra para o exterior, pois deve, dando o seu contributo insubstituível, enquadrar-se na ética de mínimos que regule a ordem social
Há uma segunda afirmação que queria destacar: "Aos católicos… convidamo-los a examinarem… as exigências de fidelidade à Igreja a que pertencem e às verdades fundamentais da sua doutrina" (3). Enquadrando-se esta afirmação no âmbito da moral, torna-se urgente um diálogo dentro da própria Igreja em que todos os fiéis sejam tratados como sujeitos, inseridos na história e construtores dessa mesma história. Hoje, muitos cristãos sentem que há não só uma excessiva dogmatização neste âmbito mas também um discurso mais próprio de séculos passados do que da realidade presente, carente de uma adequada iluminação (cf. GS 4) e particularemente quem têm de lidar com crianças e jovens. Esta tendência dogmatizante, num campo tão sensível às mudanças históricas, não deixa espaço suficiente para o contributo insubstituível que, concretamente os leigos, aqueles que mais são confrontados com as mudanças, são chamados a dar (cf. FC 5) e pode esquecer a recomendação de "aplicar as verdades eternas à condição mutável das coisas humanas e anunciá-las de modo conveniente aos homens nossos contemporâneos" (OT 16).
E se há "uma hierarquia das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente" (UR 11), também "a Igreja deveria proclamar uma hierarquia de verdades morais segundo a distância ao centro (da moral cristã) que é o amor" (G. Faus).
É que há cristãos que vivem angustiados com a carga de uma moral normativa que sentem desincarnada. E serão cada vez menos, se não houver capacidade para formar as consciências cristãs não apenas segundo normas e sanções (que pode facilmente transformar-se numa "pastoral do medo" ou da "culpabilidade") mas sobretudo segundo uma "ética de sentido", que nos aponte o rumo a privilegiar num tempo de permanentes mudanças e relativização de valores (privilegiando uma "pastoral da responsabilidade"). As palavras de Bento XVI, logo a abrir a sua primeira encíclica, são bem claras: "No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo" (DCE 1).
Como dizia alguém, "os católicos, quando entram na Igreja, são convidados a tirar o chapéu, não a cabeça". Se assim não for, continuará a haver muita dificuldade em transformar o "rebanho de Deus" em "Povo de Deus". E sem esta transformação, poderemos continuar a ter muitos fiéis, "cumpridores do preceito", mas sempre incapazes de assumir as responsabilidades que lhe cabem na missão da Igreja: "Reconhecendo quais são as exigências da fé e por ela robustecidos, não hesitem, quando for oportuno, em idear novas iniciativas e levá-las à realização. Compete à sua consciência previamente bem formada, imprimir a lei divina na vida da cidade terrestre… Esclarecidos pela sabedoria cristã e atendendo à doutrina do magistério, tomem por si mesmos as próprias responsabilidades" (GS 43).
É esta a distância entre católicos adultos e responsáveis ou católicos consumidores de serviços. A Igreja, que somos todos, deve decidir quais prefere.
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