O génio literário de S. Paulo
Manuel Augusto Rodrigues
É este o título de um admirável livro de Amédée Brunot aparecido em 1955 e que ainda hoje se lê com imenso gosto. Como homem de carne e osso, de sangue e nervos, com paixões e emoções Saulo de Tarso utiliza a palavra ditada pela fé e também pelo seu temperamento feito de uma viva sensibilidade e de todos os recursos que levam a mover o coração do homem. Dotado de uma inteligência lúcida, capaz de grandes sínteses, de índole abstracta, mas com a possibilidade de apresentar exemplos concretos quando entende fazê-lo, a que se junta uma vontade férrea com a qual consegue vencer a fadiga e os obstáculos, ele continua a provocar a melhor atenção de todos.
Cingindo-nos aos aspectos da sensibilidade e da imaginação paulinas, evidenciamos em primeiro lugar o tema das tensões e da harmonia de sentimentos: o grande missionário que trouxe o cristianismo à Europa é um homem de contrastes: ao entusiasmo sucedem-se estados de marasmo. Nota-se nele desde a Epístola aos Tessalonicenses em diante uma miséria nativa angustiante aumentada pela angústia do apostolado e da santidade que são logo ultrapassadas por uma força superior que o sustém. Em 1 Cor. 2, 3, revela-se fraco, temeroso, a tremer, talvez porque entrava numa cidade marcada pela corrupção (en astheneía kai en fóbo kai en prómo polló), depois das emoções da Macedónia e do fracasso de Atenas. Um certo nervosismo o invadia nesse momento.
É na 2.ª Carta aos cristãos daquela cidade do norte da Grécia que manifesta mais claramente as suas confidências de tristeza e de abatimento: «…Bendito o Pai das Misericórdias e o Deus de toda a consolação, que nos consola em todas as nossas aflições» (2 Cor. 1, 3-4). Esses arrebates e uma espécie de frieza verificam-se sobretudo em 1-2 Cor. e em Gal., cartas plenas de expressões reveladoras de sentimentos. Em 2 Cor., chega a falar do fardo quotidiano que pesa sobre os seus ombros e de lágrimas no testamento a Timóteo; em 1 Tess. 2, 17-18, no amor de Paulo vê-se a inquietação do apóstolo, a privação de companhia e por isso desolado. Mas em 2 Cor. 7, temos a alegria, a confiança, a consolação. Há pois uma tensão permanente entre o lado positivo e o negativo do discípulo de Gamaliel.
Mas, apesar de tudo, constamos no Apóstolo das Gentes uma grande harmonia interior que se manifesta, por exemplo, na Epístola aos Romanos, em que como arquitecto audacioso constrói a catedral da fé. É Cristo que lhe dá o equilíbrio e serenidade.
Interessante é também referir as ironias do polemista. Mostra-se delicado, mas a ironia é uma arma preciosa nas mãos do polemista. Falando de si mesmo, mistura a modéstia com a ironia: «Para mim, irmãos, quando vim junto de vós, não vim anunciar-vos o mistério de Deus com o prestígio da palavra ou da sabedoria…A minha palavra e a minha mensagem não tinham nada dos discursos persuasivos da sabedoria» (1 Cor. 2, 1-4). E em 2 Cor. 11, 6, escreve: «Não sou senão um profano (idiótes, homem não iniciado, sem cultura e sem educação) relativamente à eloquência, mas quanto à ciência é outra coisa». Os cc. 10-11 daquela carta são uma excelente apologia de si mesmo com ricas interpelações quanto à sua pessoa. Bossuet no seu “Panegírio de S. Paulo” comentou assim: «Ele, este ignorante na arte de bem dizer, com esta locução rude, com esta frase que sente o estrangeiro, ele irá para essa Grécia polida, a mãe dos filósofos e dos oradores, e, apesar da resistência do mundo, ele aí estabelecerá mais igrejas do que Platão ganhou de discípulos por meio de uma eloquência que se quis ser divina». Houve autores que elogiaram este ignorante como um clássico do helenismo e inclusivamente que o compararam a Platão pela sublimidade da dicção em passagens como Rom. 8 e 1 Cor. 13.
Relativamente às repercussões literárias, notamos algumas fraquezas como os anacolutos e os parênteses, as elipses e as hipérboles e as frases embrulhadas que denotam o movimento espontâneo do seu pensamento que fala como que em estilo telegráfico. Já os Padres da Igreja, como Santo Ireneu, chamaram a atenção para estes pormenores.
Como exemplos da beleza literária dos seus escritos, temos 1 Cor.,13 que constitui um magnífico hino à caridade; em Rom. 8, 31-39, ao amor de Deus; em Fil. 2, 6-11 a Cristo; e em 2 Cor. 11, o seu auto-elogio.
A sua imaginação transparece na riqueza e variedade de termos e expressões utilizados: homem, corpo, idades da vida, vida familiar, social, edifício, culto, jogos de armas, teatro e anfiteatro, desporto, armas, direito, natureza.
Há uma variabilidade e uma liberdade muito acentuadas. A imaginação é rápida, deparando-se às vezes uma fila de imagens heteróclitas. Em 1 Tess. 5, 1-11, falando da incerteza, centra o seu pensamento à volta de várias metáforas: dia - noite (para ladrões), da vigilância - sono, da mulher no trabalho, da luz - trevas, da panóplia –edificação. Em 2 Cor. 5, 1-15, encontramos a imagem da tenda (corpo), morada, vestes, vincando que em tudo isso a alma é o ocupa um lugar fundamental. A vida é considerada como peregrinação e como um exílio.
Há um a agrupamento de imagens em Ef. 2, 13s.: longe – perto, de dois corpos fez (Deus) um único corpo, um homem novo, estrangeiros – familiares de Deus, concidadãos dos santos, os apóstolos como fundamento sobre os quais nos elevamos, sendo Cristo a pedra angular. Facilmente Paulo passa da imagem da plantação à da fundação ou da edificação que ele prefere (1 Cor. 2, 7: Ef. 3, 17) seguindo Platão, Jeremias e Ezequiel. Aplica as imagens como lhe convém: resgatados, libertação custosa etc. enchem o corpus paulino. Mas há uma submissão ao pensamento teológico que pretende expressar.
No que concerne ao sentido do drama que percorre as suas cartas, constatamos que as personagens são o pecado que o demónio colocou na cena do mundo e que por Adão ele aí se instalou (Rom. 5, 12-13) e habita o homem (ibid., 5, 21; 6, 12. 14). A Lei também entrou no mundo, primeiro como informadora da consciência face ao pecado, depois como juiz que pronuncia a sentença contra o pecador e a entrega à Morte (Rom. 7). A criação inteira que geme por uma libertação é abrangida por este esquema (Rom. 8, 19).
É na acção que começa a partir da Cruz gloriosa que Paulo convida a seguir as peripécias do drama redentor. É explicação e solução: O primeiro acto está em Rom. 5, 6, 7 com as principais etapas da história da humanidade. O Homem é, ao mesmo tempo, o teatro e o início do conflito. A astúcia da Serpente e a violação do preceito divino por Adão abrem as portas do Pecado (‘Amartía). Ele entra, instala-se no homem, tiraniza-o e entrega-o a outro tirano que é a Morte (thánatos). Os dois actores triunfam.
Mas Deus não abandona o Homem. Sob Moisés, a Lei (Nómos) entra em cena surgindo como um fim de salvação: a sua missão é a de forçar o pecado a retirar a máscara, de o revelar ao Homem, de lhe fazer tomar consciência. Mas o Pecado consegue dominá-lo. O poder do Pecado é forte. A razão (Nous) conhece e aprova a Lei e a Carne (Sarx) fomentada pelo Pecado é muito poderosa. «Maldito homem que eu sou! Quem me livrará deste corpo que me conduz à morte?» (Rom. 7, 24).
O segundo acto mostra-nos algo superior. Uma outra personagem ilumina a cena: «O Senhor da Glória» (1 Cor. 8) que pela sua morte e ressurreição liberta o homem esmagando os inimigos. Mas cabe ao Homem prosseguir a marcha. O Pecado e a Morte perderam a sua virulência, mas há que resistir, pois na alma do cristão os dois adversários combatem entre si. O nous e o pneuma coexistem sendo a Lei do espírito que dá a vida. Pela fé o Homem tem acesso à justiça divina É a epopeia da salvação.
Desde então há uma divisão com duas categorias: os servidores de Cristo e os escravos do pecado (Rom. 6, 16-17). Aos soldados de Cristo-Rei exige-se a oferta dos seus membros e das suas faculdades corporais para forjar as armas da justiça. Em 1 Tess. 2, 1-12, o Adversário enfrenta o Obstáculo e em 1 Cor. 15, 54-57, lê-se: «A Morte foi engolida pela vitória. Onde está, ó Morte, a tua vitória? Onde está o teu aguilhão? O aguilhão da morte é o pecado, e a força do Pecado é a Lei. Mas graças sejam dadas a Deus, que nos deu a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo».
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