QUARESMA, TEMPO DE DESCOBRIR O PRÓXIMO
José Dias da Silva
Bento XVI recorda-nos que na Quaresma "o Senhor chama cada um de nós a fazer-se intermediário da sua providência junto do próximo" (2). Curiosamente, neste Natal uma das palavras que mais me marcaram foi a de "próximo". Porque celebrar o Natal é não só recordar mas pôr em prática o significado profundo daquele momento histórico em que o nosso Deus, que é consolação, que é promessa, que é libertação, desceu à terra para se fazer próximo de cada um de nós para que cada um de nós se faça próximo de todos os outros, homens e mulheres. Ele fez e continua a fazer o seu papel de ser o primeiro "bom samaritano". Nós é que falhámos e por isso temos o mundo que temos. Pouco nos impressionam tanto a pergunta acusadora com que Deus abre a Sagrada Escritura "Onde está o teu irmão?" (Gn 4,9) como a explicitação de Jesus sobre quem "é o meu próximo" (Lc 10,29-37).
Esta parábola que tanto impressionou artistas e escritores é uma referência fundamental para nós, todos nós, especialmente os cristãos. E não só pelo ensinamento da metodologia, que deve presidir ao acolhimento do outro e à intervenção transformadora na realidade, numa sequência magistral de verbos de acção: ouviu; aproximou-se para "ver com os sentidos"; viu "com a inteligência"; comoveu-se, isto é, viu "com o coração; e inevitável e coerentemente agiu: "Só se contribui para um mundo melhor, fazendo o bem agora e pessoalmente, com paixão e em todo o lado onde for possível, independentemente das estratégias e programas de partido. O programa cristão – o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus – é ‘um coração que vê’. Este coração vê onde há necessidade de amor e age de acordo com isso" (DCE 31b).
A parábola traz-nos ainda outras lições estruturantes.
Em primeiro lugar, esclarece quem é o meu próximo. E fá-lo de duas maneiras inesperadas para a época. O meu próximo tem as fronteiras do mundo, estende-se a todas as pessoas e a todos os povos, mesmo inimigos (não eram os samaritanos inimigos figadais dos judeus?) e até às gerações futuras. Percebe-se a estranheza pois dos Judeus, para quem próximo tinha uma perspectiva ideológica ou grupal (próximo é o que pertence ao meu grupo religioso ou, quando muito, nacional) e para nós que temos uma concepção mais geográfica (o que está perto de mim) ou ideológica (o que pensa como eu). Jesus faz estilhaçar estas definições. Para Jesus, a proximidade mede-se não pela distância geográfica ou cultural, mas pela distância ao coração de Jesus, ao coração dos que vivem inumados pelo amor de Cristo. Mas Jesus faz-nos dar mais uma "cambalhota". O problema não é "quem é o meu próximo" (Mt 10,29), mas "de quem sou eu próximo" (Mt 10,36). Isto é, eu não posso estar à espera de alguém ser meu próximo por necessidade ou por afinidade. Eu é que tenho de me fazer próximo do outro. Tenho de tomar a iniciativa: estar atento, ver com os sentidos, ver com a inteligência, ver sobretudo como coração e finalmente agir. Foi o que o nosso Deus fez ao incarnar: fez-se próximo de nós para nos poder libertar das nossas necessidades existenciais. Portanto, a pergunta que tenho de fazer é "de quem sou eu próximo" e quantas vezes a resposta nua e crua é "de ninguém". Perceber esta viragem radical é indispensável para eu poder viver correctamente o meu "amor ao próximo" e me encontrar com Deus. Então "amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus" (DCE 15).
Mas há uma segunda lição no ensinamento de Jesus. Na parábola aparecem em confronto o sacerdote e o levita, de um lado, e o samaritano, do outro. O sacerdote "viu-o mas passou ao largo". O levita também "o viu mas passou adiante". Estes são os grandes representes do poder religioso, os encarregados de falar com Deus. É esta a tarefa que o sistema lhes atribuiu. E eles não podem, por causa dessa tarefa, distrair-se com outras preocupações, mesmo com um homem a esvair-se em sangue. A sua tarefa é cuidar de Deus, cumprir bem os rituais para que Deus não se indisponha com a humanidade. É uma responsabilidade muito pesada, muito estruturante, da qual nada os deve distrair. Haverá coisa mais importante prestar louvor a Deus para que ele não se irrite com as suas criaturas?
O samaritano é que parou. Deixou para segundo plano os seus negócios: quem sabe se essa paragem não o terá feito perder alguma empreitada choruda. Mas ele para, porque está ali alguém, um semelhante seu, que foi assaltado e moído de pancada e precisa de ser socorrido. A prioridade para ele é tratar desse desconhecido, que passa a ser conhecido porque é também uma pessoa e porque ele "viu-o e comoveu-se", encheu-se de compaixão, fez entrar este homem ferido na proximidade, na órbita, do seu coração.
O inesperado para os Judeus e para muitos cristãos é que quem actuou bem não foram o padre e o levita, os homens do religioso, do contacto com Deus, mas o samaritano, homem de um povo quase ateu, que não estaria tanto em contacto formal com Deus, mas estava em contacto com os homens. Jesus estilhaça esse sistema na linha de outras intervenções: "Não é o que diz Senhor, Senhor que entrará no reino dos céus, mas o que cumpre a vontade de meu Pai" (Mt 7, 21). Para Jesus, o único sistema é o que dá prioridade à pessoa, pois "não foi o homem que foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem" (Mc 2, 27).
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