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13 de fevereiro de 2008

O “Correio” entrevistou o Bispo de Vila Real

Como vive um Bispo um transplante cardíaco
No dia 13 de Janeiro, a equipa chefiada pelo Prof. Manuel Antunes, do Centro de Cirurgia Cardiotorácica dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) fez um transplante de coração ao Bispo de Vila Real, D. Joaquim Gonçalves. O problema cardíaco vinha de longe (desde os 52 anos) e, depois de várias tentativas para solucionar, sem resultado duradoiro, surgiu a ideia do transplante e, logicamente, do Prof. Manuel Antunes. Em diálogo com o Bispo, convalescente na Casa Episcopal de Coimbra, começámos por perguntar-lhe se já conhecia aquele cirurgião, e se isso pesou na decisão de optar por uma intervenção em Coimbra.



Joaquim Gonçalves (JG) – Conhecia-o pelos êxitos cirúrgicos obtidos e por algumas intervenções televisivas, mas não havia estabelecido com ele qualquer relação pessoal. O primeiro contacto pessoal fi-lo em Novembro passado, no dia 22, quando concluí os dias de internamento em Cardiologia B dos Hospitais da Universidade de Coimbra para fazer os exames preparatórios e acertámos no Centro de Cirurgia Cardiotorácica a intervenção em ordem ao transplante cardíaco.


Correio de Coimbra (CC) – Que ideia tem agora do Professor Antunes?
JG –
Ainda não tenho intimidade bastante que me permita falar de uma personalidade desta dimensão, mas a impressão que me dá é a de uma vocação excepcional em que, na mesma pessoa, se conjugam a paixão e a competência científicas, a alegria do trabalho de cirurgião cardiotorácico, capacidade de liderança e até de gestor.



CC – Foi-lhe fácil avançar para o transplante?
J.G –
Nem tudo foi fácil. Aos 71 anos já sentimos alergia ao sofrimento e, sobretudo, a insegurança sobre a alteração de hábitos de vida pessoal. Valeu-me o encorajamento dos médicos e de muitas pessoas conhecidas, de que seria uma pena não avançar, de que reunia as condições para um êxito e mais tarde seria impossível.



CC – Como tem vivido o transplante?
JG-
É uma experiência singular e plurifacetada que me obrigou a ler todo o percurso de vida feito até aqui e até as noções rudimentares da ciência. Estas experiências realizadas na fronteira da vida fazem-nos descer do puro academismo e dão lugar a uma vivência interior alargada conforme a cultura e a sensibilidade de cada um. Há um primeiro aspecto visível, objectivo, neste Centro de Cirurgia Cardiotorácica de Coimbra que me impressionou desde o início: é a sua elegância interior, seja nas cores escolhidas sejam na distribuição do espaço. Tudo ali foi previsto até ao pormenor. Um segundo aspecto é o profissionalismo de quem ali trabalho, desde os médicos aos enfermeiros, ao pessoal administrativo e auxiliar de limpeza. Como numa colmeia, cada um conhece o seu papel e ninguém fala de cor. O doente chega a ter saudade do hospital, tal a segurança que ali respira. Trata-se indubitavelmente de uma estrutura oficial que honra a cidade, a região e o país.



CC – Um transplante mexe mesmo com a pessoa por dentro?
JG –
Claro! Um transplante cardíaco pode comparar-se a um pequeno abalo sísmico. Além dos aspectos existenciais que se sobrepõem a tudo, é uma experiência profunda sobre os mecanismos biológicos da pessoa humana. Quando aprendemos os rudimentos sobre a estrutura biológica fundamental da pessoa humana, ensinam-nos que o corpo é uma « totalidade refinadamente equilibrada de muitos elementos e órgãos». È um cosmos. Ora o transplante mexe nesse conjunto de órgãos, o tal abalo sísmico, ainda não na profundidade da pessoa.



CC – Sofreu muito?
JG –
Por estranho que pareça, não tive dores físicas nem durante nem logo depois do acto cirúrgico, mas somente nos exames posteriores. O diálogo antecipado com o doente para lhe fornecer a informação pormenorizada sobre os riscos que corre antes e depois da cirurgia, é que assusta mais. A cirurgia em si durou cinco horas e, passadas mais doze já no quarto, estava perfeitamente lúcido, ainda que algo cansado. Duas semanas depois já regressava à Casa Episcopal de Coimbra. De qualquer modo, trata-se de uma cirurgia de alto risco onde somente se entra como último recurso, até por questões de natureza social.


CC – Tem agora à sua frente um período brilhante de qualidade de vida....
JG –
Bom, um transplante cardíaco ainda não é uma ressurreição. É somente um acto médico, natural, e continuamos sujeitos às leis do espaço e tempo históricos. Na caminhada destes 71 anos, o coração cansou-se mais depressa que os outros órgãos com a mesma idade. Um dia poderão ser eles a falhar. É a lei do tempo.



CC- O senhor D. Joaquim hospedou-se na Casa Episcopal de Coimbra. Alguma razão especial?
JG –
Fundamentalmente, a necessidade de estar próximo do Hospital. Depois, a necessidade de uma ambiente familiar porque estes tratamentos trazem sempre coisas imprevisíveis. Uma família em Vila Real ofereceu-me generosamente o uso de um apartamento que possui em Coimbra, enquanto eu aqui estivesse, mas o importante é o clima interior e esse não deve improvisar demasiado. Aceitei, por isso, o convite generoso de D. Albino e aqui estou desde 29 de Novembro.



CC – É habitual esse relacionamento entre os bispos?
JG –
É. A hospitalidade constitui, desde os tempos apostólicos, uma das mais belas tradições das relações dos bispos. Quando cheguei a Coimbra encontrei hospedado na Casa Episcopal, numa breve passagem pela cidade, um bispo brasileiro que ali viera receber uma homenagem.



CC – Esperou muito tempo pelo aparecimento do coração novo?
JG –
Passei ali todo o mês de Dezembro, as festas da Imaculada, do Natal, do Ano Novo, dos Reis, e fui chamado pelo próprio Professor Manuel Antunes pelas vinte e duas horas do Sábado, dia doze de Janeiro deste ano, quando decorria na Sé Nova um concerto musical que dava início à celebração dos 25 anos de Episcopado de D. Albino. As pessoas da Casa haviam ido ao concerto, menos um padre que, por prudência, ficara no seu gabinete e me levou ao hospital como quem vai passar um fim de semana. O professor queria falar comigo antes da cirurgia e, quando cheguei, ainda o novo coração não tinha chegado. Um enfermeiro fez-me a higiene preparatória destes actos e já não dei pela chegada do coração.
Quando regressaram do concerto da Sé, D. Albino foi o primeiro a ver a garagem meio aberta e a aperceber-se de que «tinham roubado o bispo de Vila Real». Uma religiosa informou-o da minha ida para o hospital, comunicou-lhe o meu desejo de só informar a diocese e a família de madrugada, e o padre que me levara ao hospital acompanhou no corredor a cirurgia, regressando a Casa na madrugado de Domingo. A informação à diocese de Vila Real e à família foi dada pelo senhor D. Albino pelas dez horas de Domingo.



CC – Quando regressou ao Paço?
JG –
Na tarde de dia 28 de Janeiro. Recordo-me bem que ainda lanchei no Centro e, enquanto lia o jornal numa varanda do Paço à espera do jantar, o padre administrador da Casa que me fora buscar ao Centro de Cirurgia pôs a girar um CD com fados de Coimbra cantados por Machado Soares «para alegrar o coração». Foi um gesto tocante. Nunca me pareceram tão belos.



CC – Não sente «saudades» do seu «velho coração»?
JG –
Como sabe, a sede dos sentimentos reside no cérebro. Sabemos que temos um novo coração porque o cirurgião o diz, mas psicologicamente tudo continua igual, como se nada se tivesse passado. Havia estudado isso nas aulas de Biologia e de Psicologia no Seminário. A esse respeito, lembrei-me até de fazer uma brincadeira académica. Tinha comigo um CD com a travessia, um Oratório musical composto por um padre meu contemporâneo de Braga (o Dr. Joaquim Santos) para a celebração das minhas bodas de prata episcopais em 2006. Como o texto da Travessia foi escrito por mim e sei bem o calor e intenção que pus na sua redacção, depois daqueles fados, lembrei-me de passar o CD da Travessia para ver se sentia o texto com o mesmo calor com que o escrevera há anos. Enquanto ouvia o CD, o coração que batia no peito era o mesmo que batera durante os 71 anos, o mesmo coração que veio do seio materno, o coração que escrevera o texto e me fez sentir a
vida até ao transplante de há duas semanas. Dentro do peito, nada parecia haver mudado, embora eu soubesse que haviam substituído um músculo como substitui uma tecla num orgão de tubos, continuando a funcionar o mesmo registo afectivo. Certamente, há nisto alguma simplificação, pois o novo coração trouxe consigo uma energia que o outro já não tinha e que nunca conhecera, mas, para além dessa força, nada senti de novo. Há uma integração do novo órgão no organismo total da pessoa e penso que é nessa integração que reside o problema.



CC – Como se relaciona interiormente com o dador do novo coração?
JG –
É um sentimento profundo de comunhão humana, uma comunhão sem rosto, quase uma comunhão de pessoas e coisas. Enquanto esperava, interroguei-me muitas vezes e continuo a interrogar-me: Donde veio o coração? Quem era o dador? Era um homem ou uma mulher? Qual era a sua condição social? A lei portuguesa nunca permite sabê-lo e ainda bem para todos. Durante o tempo que esperei pelo transplante, diariamente rezei pela pessoa que, conscientemente ou inconscientemente, me iria proporcionar um suplemento de vida neste mundo e pedi a Deus que a recompensasse. Quando pude celebrar a Missa, associei sempre a oração por essa pessoa à oração pelos meus familiares e amigos falecidos. Entrou no grupo. Com o decorrer das semanas de espera e o agravamento da debilidade cardíaca, a reflexão interior foi-se aprofundando cada vez mais até ao ponto de me interrogar se não devia rezar por mim próprio para aceitar morrer porque, nos caminhos da Providência, era possível que o coração aparecesse tarde demais e fizesse mais falta a outro doente. Nestas questões de fronteira, o diálogo com Deus vivo é abrangente, inclui a possibilidade da morte pessoal.



CC - Quando pensa regressar a Vila Real?
JG –
Quando concluir a série de exames hospitalares obrigatórios. Como o Papa me enviou um bispo coadjutor, estou mais tranquilo. E de certeza que, ao partir de Coimbra, ouvirei de modo diferente aquele célebre fado de que «Coimbra tem mais encanto na hora da despedida». Regresso como um dos «alunos dos Hospital», daqueles que vieram a Coimbra por motivos de saúde.



CC – Quer deixar alguma mensagem especial?
JG –
Queria deixar aqui um muito obrigado ao professor Manuel Antunes, à sua equipa de trabalho científico e profissional e a todos os que de algum modo contribuíram para a melhoria da minha qualidade de vida. E ficou para o final a palavra de gratidão ao Bispo desta diocese. Foi uma boa coincidência que esta cirurgia tivesse ocorrido no ano das suas bodas de prata episcopais. Será mais um gesto a fazer memória do seu percurso pastoral. Embora eu não tivesse podido tomar parte em nenhum dos três grandes actos solenes da celebração, passando essa tarde de sol do dia 27 de Janeiro no Centro de Cirurgia Cardiotorácica a pedalar numa bicicleta cirúrgica e a saborear a paz que subia do parque vazio do Hospital, senti todo o calor da preparação da festa, a alegria da comunidade diocesana e a presença de muitos irmãos bispos.



CC – Obrigado, senhor D. Joaquim! Desejamos-lhe muitos anos com qualidade de vida.




Miguel Cotrim

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