Ad limina
Na pág. 42 do "Público" do passado dia 2 de Novembro, nas habituais "Cartas ao Director", um título chamou-me a atenção: "E quem examina os bispos?". Um leitor de Viseu, a propósito da visita Ad limina dos bispos portugueses a Roma, foca alguns aspectos que me parecem muito pertinentes. Para ele, há muita insatisfação nas bases e o episcopado é o grande culpado. E acrescenta: "Os cristãos sentem-se abandonados, mostram-se desapoiados. Por decoro não falam em público do que sentem, mas também não ocultam o seu mal-estar. Os seus pastores não estão próximos. Falam muito ex cathedra, e pouco no dia-a-dia. Falam muito de comunhão, mas não a estabelecem com as pessoas (…). Os padres dificilmente ocultam uma sensação de desconforto. São atirados para as dificuldades e, frequentemente, não têm direito a uma palavra. (…) Parece que estão mais perto dos que exercem o poder do que com as suas vítimas", etc., etc. E termina assim: "Os bispos voltarão de Roma todos contentes. Mas esse contentamento não será ditado pela melhoria das coisas. Tudo continuará na mesma. Ao menos, vale-nos Deus".
Curiosamente, nesse mesmo dia leio, no "Correio de Coimbra", a entrevista que D. Carlos Azevedo concede à ecclesia a propósito da visita Ad limina e das últimas (desconfortantes) estatísticas da Igreja portuguesa (p. 7). Sem "papas na língua", o porta-voz do episcopado considera que as dioceses "não têm tido a preocupação de lançar uma pastoral vocacional", que as celebrações têm pouca beleza, com homilias mal preparadas, que existe pouca formação para a comunhão, que temos de "reconsiderar a forma de fazer pastoral", que "os padres devem dedicar-se mais à sua missão específica" e libertarem-se de tarefas que foram acumulando e que nada têm a ver com o seu múnus, e questiona a eficácia dos dez anos de catequese paroquial.
Já este texto estava praticamente concluído, surge (in)esperadamente um terceiro testemunho, que não posso deixar de o registar telegraficamente - o de Bento XVI, dirigido aos bispos portugueses e à Igreja portuguesa. Num discurso que merece ser bem analisado, o Papa pede mudanças de estilos de organização e mentalidade, quer mais eficácia no trabalho que realizamos, deseja "bem estabelecida a função do clero e do laicado", recorda que todos os baptizados são corresponsáveis pelo crescimento da Igreja e cria uma palavra de ordem: "construir caminhos de comunhão".
Felicito o leigo de Viseu pela coragem de partilhar publicamente a sua opinião, questionando o papel dos bispos. Aplaudo D. Carlos Azevedo pela sua ousadia. Não esconde nem sublima a realidade, incomoda (quase) todos e é perspicaz na análise. E não esqueçamos que ele falava em nome dos bispos. Ao Papa só posso dar os parabéns. Diz o que muitos leigos (a maioria dos quais afastados da Igreja) e alguns padres andam por aí fartinhos de dizer e escrever. E diz aquilo que os nossos bispos, no íntimo, também já reconhecem há muito (basta ler a entrevista de D. Carlos), mas que não têm tido a coragem de assumir, por medo, por ineficácia, porque também estão (pre)ocupados com muitas coisas administrativas e pouco pastorais.
Recuso, todavia, transformar os problemas que assolam a Igreja em lutas entre bispos, padres e leigos. Todos têm "culpas no cartório" e não gostaria de ver o bispo de Roma dizer que o mal está no episcopado português, os bispos dizerem que o mal está nos padres e leigos (esquecendo-se que eles são os primeiros responsáveis da Igreja e têm a gravíssima obrigação de serem os primeiros a mudar), nem os padres a culpabilizar os bispos e os leigos (esquecendo-se que, como responsáveis pelas paróquias, têm de dar muitos exemplos), nem os leigos a criticarem os consagrados (esquecendo-se que eles, como baptizados, têm a obrigação de sair do comodismo do sofá e evangelizar e ser testemunhas de Cristo por tudo quanto é sítio).
Mas congratulo-me pelos três testemunhos "irreverentes" – de um leigo, de um bispo e do Papa – coisa a que estamos pouco habituados. Na nossa Igreja há pouco diálogo (e, por isso, pouca comunhão), há muito pouco debate de ideias (por medo?), há pouca ousadia e criatividade e, sobretudo, muda-se pouco. Ou melhor, muda-se de vez em quando qualquer coisita para poder continuar tudo na mesma…
Com estes sinais de ousadia episcopal e laical, e com estas afinadas recomendações do sucessor de Pedro, talvez venhamos a ter uma Igreja com bispos mais próximos e mais pastores, padres e restantes consagrados mais realizados, acolhedores e cientes da sua missão específica, leigos mais dinâmicos, empenhados, autónomos, corresponsáveis e convencidos de que muito do "sucesso" da Igreja passa por eles. E quem sabe se daqui a um lustro, na próxima visita Ad limina, o discurso seja outro, as estatísticas também, e os bispos venham efectivamente contentes (embora sempre inquietos) de Roma, porque fizeram bem o "Trabalho de Casa"?
Jorge Cotovio
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