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24 de abril de 2007

Longa conversa com a jornalista Lisa Ferreira



Padre Jorge Camejo: as peripécias de uma vida com história

"Heróicidade que emocionou Moçambique" - foi o título que um semanário encontrou para, na época, sintetizar a aventura do padre Jorge Camejo, então no Niassa, para encontrar uma senhora e três crianças raptadas. Esta e muitas outras histórias fazem parte da vida deste sacerdote da Diocese de Coimbra, que fez um longo percurso humano, de Coimbra a Vila Cabral, passando por Sá da Bandeira e Luanda, até ao regresso a Coimbra.

Longa conversa com a jornalista Lisa Ferreira
Padre Jorge Camejo: as peripécias de uma vida com história

"Um sacerdote apaixonado do bem-fazer": foi assim que o jornal Novidades, de 7 de Fevereiro de 1967, se referiu ao padre Jorge Camejo, contando aos leitores a sua história de aventura em terras de África e dando a conhecer "o grande universo da sua alma generosa". O "Correio" quis voltar a ouvir a mesma história, contada pelo seu protagonista, muitos anos depois, com palavras simples mas cheias de um entusiasmo mal contido. Para que seja possível aprender com ela, mais uma vez, caminhos de entrega e de serviço aos outros.

Com D. Eurico em Moçambique: o melhor tempo da minha vida
Em Julho de 1964, D. Eurico Dias Nogueira é nomeado bispo da diocese moçambicana de Vila Cabral e faz-se acompanhar pelo padre Camejo, que deixa o Convento de Semide, onde era administrador, para se instalar nos longes do Niassa. De África, recorda o "espaço largo", "a harmonia com a natureza" e a proximidade com as pessoas que, em comunidade, respiravam um "outro espírito", definido pelo respeito natural pelas diferenças e pela proximidade própria de quem aprendeu a pensar no outro. As capelas construídas nos povoados africanos para acolher católicos, anglicanos e muçulmanos são um bom exemplo da tolerância vivida nas sanzalas e nos aglomerados de habitações da altura. Lembrando as festas religiosas e querendo mostrar a importância da tolerância, este sacerdote revive o dia em que membros da comunidade muçulmana se prontificaram a levar o andor de Nossa Senhora, que partilha o nome com Fátima, filha de Maomé.
A tarefa de prestar auxílio ao bispo e de o acompanhar como secretário foi sempre o menor dos trabalhos que lhe couberam, ditados também pela sua iniciativa e pelo facto de ter feito dos que o procuravam, pedindo ajuda, o seu mundo e a sua escolha. Em palavras publicadas no Diário de Notícias, de 27 de Março de 1967, o padre Camejo "tornou-se uma figura de todos os dias, quer ensinando doutrina aos catecúmenos, quer acompanhando o seu prelado, quer aparecendo nas festas dos muçulmanos, quer espalhando bondade e amor".
Quando lhe perguntamos se o poder da PIDE era nessa altura palpável em Vila Cabral, reconhece, hoje, que terá sido, muitas vezes, "imprudente". Ser cauteloso e "estar de sobreaviso" eram atitudes constantemente necessárias para alguém que mantinha relações com os, então chamados, terroristas da Frelimo. As deslocações às missões que ficavam fora da cidade exigiam cuidado e prudência. Com a naturalidade de quem viveu de perto o que só conhecemos de ouvir falar, diz ter assistido à tortura de um catequista da diocese: "vi-o pendurado por uma roldana pelos pés, de cabeça para baixo". O chefe da PIDE disse-lhe, então, que o mesmo não lhe aconteceria se "estivesse" com eles… Muitos dos Missionários do Niassa tinham processos naqueles serviços do Estado e passavam, de voz em voz, os lugares onde, pela calada da noite, se enterravam, numa vala comum, as vítimas que não resistiam aos maus tratos. As histórias de desaparecimento dos Nianjas, uma etnia das imediações do Lago Niassa, ou de cães atiçados para não se ouvirem os gritos de quem era torturado faziam eco nas populações, dando espaço ao medo colectivo para crescer.

"Heroicidade que emocionou Moçambique"
"Foi o melhor tempo da minha vida", afirma, sem dúvidas, o padre de quem se disse ser de uma "heroicidade que emocionou Moçambique" (semanário de Castelo Branco, Reconquista, de 9 de Abril de 1967). E o título de herói assenta-lhe ainda melhor se conhecermos a sua aventura pelo mato africano em busca de uma mulher e três crianças raptadas. No Colonato da Nova Madeira, a cerca de 20 quilómetros de Vila Cabral, fora levada pelos guerrilheiros uma senhora açoriana e três crianças. O pai angustiado estava, no dia seguinte, na residência do bispo, para pedir ajuda. Porque as informações tardavam, o padre Camejo conseguiu, de D. Eurico, autorização para se deslocar à missão de Unango, a 40 quilómetros, a fim de recolher informações sobre as raptadas. Acompanhado por guias da Frelimo, dispôs-se a chegar às primeiras bases do movimento, na pista dos desaparecidos. Sem documentos, sem dinheiro, sem outra roupa que não a batina preta que levava vestida e com uns sapatos "que iam ficando pelo caminho", seguiu pelo mato com os guerrilheiros, partilhando com eles carne de macaco e de ratos. Da viagem cansativa, conta que o que mais o impressionava era "ver, dentro do caldeiro, as mãos dos macaquitos já mortos". Depois de dias sem sal com que temperar os alimentos, recorda, também, o conteúdo de um frasquinho levado por um chefe da guerrilha, uma mistura de sal e jindungo, cujo sabor diz não ter conseguido esquecer até hoje.
Sempre a pé e bebendo água "à maneira dos bosquímanos", sugando-a com um canudo do fundo do leito de um rio seco, o grupo chega ao cruzamento do rio Messinge com o Rovuma e a um sítio onde era fácil atravessar a fronteira e pôr pés na Tanzânia. Confundido com um espião, é preso em Songueia onde, entrando em contacto com o Arcebispo de Dar es-Salam, consegue fazer-se transportar para essa cidade. Preso novamente, já com os sapatos presos por arames e as calças rotas, consegue provar a sua identidade como padre, rezando Vésperas da Liturgia das Horas, em latim, e recitando o Pai-Nosso, na mesma língua. Durante o tempo na cadeia, não consegue evitar o nascimento de uma áurea em seu torno que confessa ter-lhe "facilitado a vida". Tem presente a história de uma mulher presa que "passava os dias e as noites a gritar e às voltas na cela". Pediram-lhe que fizesse o sinal da cruz sobre ela e o padre Camejo, com paciência, palavras lentas e seguras e gestos sem violência, conseguiu que a mulher acalmasse e adormecesse. Ao chefe da prisão, que contrariando as regras naturais da cadeia, o levou durante a noite a jantar em sua casa, foi difícil convencer da condição de homem comum e sem poder de operar milagres do padre Camejo.
Depois de ter provado ser sacerdote, é acolhido pelo bispo de Dar es-Salam, suíço, e, na Casa Episcopal, é "tratado, lavado e liberto dos piolhos". Através da Cruz Vermelha, sabe do paradeiro da mulher e das crianças que procurava e obtém autorização para que estas pudessem viajar, não para Moçambique, mas para Portugal. Entretanto, é-lhe comprado um bilhete num barco italiano e viaja até à Beira. Explica que, nesta altura, o atinge "uma aflição tremenda": a de ser preso pela PIDE no desembarque. Os esforços do Monsenhor Barbosa, de D. Sebastião Soares de Resende, bispo da Beira, e de D. Eurico, que entretanto soubera do que se passava e viera recebê-lo, evitaram o pior. Depois da eminência da prisão, a PIDE oferece-lhe um jantar de homenagem. "Nisso, nem pensar…", diz-nos.
"Nunca quis voltar atrás!" afirma o padre Camejo com a simplicidade de quem acredita que os jornais foram, talvez, exagerados quando lhe chamaram um "aventureiro de Deus" (Diário de Notícias, 27 de Março de 1967). Ficaram-lhe melhor gravadas na memória as manifestações pessoais de gratidão e até de comoção como a do bispo D. Eurico, na Beira: "pensei que viria com uma cara carrancuda mas, em vez de ouvir um ralhete, tive um abraço comovido e quase de lágrimas".

18 anos em Angola: uma história diferente
A Moçambique seguiu-se Angola, em 1972, mais precisamente a diocese de Sá da Bandeira, sempre acompanhando D. Eurico. Aí, "a história foi um pouco diferente por se tratar de uma guerra citadina". A guerra civil que precedeu e se seguiu à independência assolava a região e os confrontos entre os militares portugueses, MPLA, UNITA e FNLA enchiam a cidade para tornar a esvaziá-la de seguida. Ao padre Camejo, mais uma vez, faltavam tempo e braços para o que sentia ser necessário fazer: "ficavam por lá muitos dispersos que era preciso acolher, esconder, levar para o hospital". No carro do bispo, viajava até às bases e refúgios do MPLA, carregado de comida e do que fosse preciso. Muitos elementos de partidos diferentes, ora vencedores ora vencidos, foram ajudados por este sacerdote que vestiu alguns com batinas pretas para que lhes fosse possível deslocarem-se em segurança. Depois dos confrontos e dos combates mais violentos, de jipe, percorria as ruas para recolher os mortos e os feridos.
"Claro que fui ficando sozinho…" diz explicando os motivos da sua vinda para Portugal. Esteve no país doze anos depois da independência. Foi, primeiro, secretário do D. Eurico e, depois, do arcebispo D. Alexandre do Nascimento, mais tarde cardeal. O clima em Luanda começava a incomodá-lo e sentia-o diferente de todos os que tinha experimentado em África. "A saúde também já não era muita", explica. No regresso, trouxe as memórias e a vontade de continuar a servir dentro da Igreja. "Por sorte", diz, abriam, nessa altura, os Hospitais da Universidade de Coimbra, e aí esteve como capelão até não lhe ser possível continuar. Mostra-nos, com algum orgulho, um cartão que lhe foi enviado, recentemente, pelo general Kundi Paihama, ministro da defesa angolano, e que chegou até si pelas mãos de D. Eurico, que esteve em Angola há poucos meses.

O regresso às origens
Da conversa com o padre Camejo, guardamos o que a sua história tem de mais surpreendente e audacioso mas também o que tem de simples entrega. Com o mesmo espírito com que nos fala de África, lembra S. Bartolomeu, onde esteve, como pároco, depois de ser ordenado. "Caí bem ali", explica apoiado pelas recordações dos grupos de jovens que "estavam, mais ou menos, ao redor da Igreja" ou dos comerciantes e moradores da Praça Velha, que "formavam uma família". O presépio vivo recebia tanta gente que muitos diziam que "parecia a Rainha Santa" e, na altura, existia "um grupo de futebol e uma banda que tocava nas aldeias e nas festas". O gosto pela arte que cresceu consigo permitiu-lhe ainda mais uma aventura: a de recolher pelas casas da comunidade antiguidades, objectos e imagens que foram guardados na igreja com o fim de os preservar da melhor forma. A viver actualmente na Casa do Clero, em Coimbra, deixa que os seus dias se preencham com o que foi vivendo. Connosco fica a história que, mais do que entusiasmar, nos ensina valores e vontades fortes.

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