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12 de janeiro de 2007

Fé e Compromisso


O DOM DO AMOR

José Dias da Silva

No último comentário referi um dos pontos principais da encíclica de Bento XVI, Deus caritas est: Deus deu-se-nos para que nos demos, a nós próprios e não apenas os nossos bens!
Gostaria de abrir este ano, recordando outros dois aspectos da encíclica, que têm a ver com a vivência do amor que as comunidades cristãs e os seus membros são chamados a fazer. Estes aspectos foram assim enquadrados por uma palavra do Papa: "A essência do amor a Deus e ao próximo descrito na Bíblia é o centro da existência cristã e o fruto da fé".
Jesus veio unir os dois mandamentos, o amor a Deus e o amor ao próximo, que no AT aparecem em separado: "por um lado, o AT apresenta o amor a Deus sobre todas coisas (Dt 6,4-5) para indicar que a Aliança implica uma resposta total ao amor preferencial de Deus; enquanto que o amor ao próximo (Lev 19,18) aparece com um significado mais ambíguo, embora participe da resposta divina que suporta toda a Aliança" (D. Corral). Jesus, na resposta ao escriba que perguntava "qual é o primeiro de todos os mandamentos", afirma inequivocamente a identidade dos dois mandamentos: "O primeiro é: Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua lama, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes" (Mc 12,29-31). Isto é, trata-se de um único mandamento com duas expressões, como explicita o Papa: "Amor a Deus e amor ao próximo são inseparáveis, constituem um único mandamento. Mas ambos vivem do amor proveniente com que Deus nos amou. Deste modo, já não se trata de um ‘mandamento’ que, do exterior, nos impõe o impossível, mas de uma experiência de amor proporcionada a partir do interior, um amor que, por sua natureza, deve ser ulteriormente comunicado aos outros. O amor cresce através do amor. O amor é ‘divino’, porque vem de Deus e nos une a Deus e, através deste processo unificador, transforma-nos em um Nós, que supera as nossas divisões e nos faz ser um só, até que, no fim, Deus seja tudo em todos" (18).
Este é o primeiro grande desafio que se coloca aos cristãos e às suas comunidades: amor ao próximo e amor a Deus é um único mandamento. Não podemos amar a Deus sem amar os irmãos, pois seríamos mentirosos (cf. 1Jo 4,20) nem amar os irmãos sem amar a Deus. Mas ouçamos as palavras exigentes do Papa: "um (amor) exige tão intimamente o outro que a afirmação do amor de Deus se torna uma mentira, se o ser humano se fecha ao próximo", enquanto "o amor ao próximo é um caminho para encontrar também Deus" pelo que fechar os olhos diante do próximo nos torna cegos também diante de Deus" (16). Conclusão terrível: se não aceitarmos este "mandamento único" de Jesus não passamos de mentirosos e de cegos!
A outra afirmação de Jesus é a sua identificação com os mais necessitados (cf. Mt 25,31-46). E o Papa assume esta passagem com muita intensidade: "É preciso recordar, de modo particular, a grande parábola do Juízo Final, onde (o amor) se torna o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade da vida humana. Jesus identifica-se com os necessitados: famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, encarcerados. ‘Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos a Mim mesmo o fizestes’. Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus" (15).
Esta identificação plena entre o pobre - o que tem fome, o que está condenado ao analfabetismo, o que não tem casa, o que não tem cuidados médicos - e Jesus , apesar de tão marcante no Evangelho, não nos toca minimamente o coração e é perfeitamente ignorada na nossa prática eclesial e cristã. Que Jesus testemunhamos às nossas crianças? Que Jesus ouvimos pregar nas homilias? Será que alguma vez ensinamos às nossas crianças que Jesus está tão presente e real na Eucaristia como está no pobre, no pobre concreto que vive à nossa porta ou no meio da nossa comunidade? E não ensinamos porque não acreditamos nisso. Contudo, já S. João Crisóstomo proclamava: "O mesmo que disse ‘Este é o meu corpo’ e com a sua palavra firmou a nossa fé é o mesmo que disse ‘Vistes-me com fome e não me destes de comer’". Seremos capazes de aceitar esta convicção como eixo estruturador dos nossos planos pastorais?
Se não vivermos do coração esta identificação, nunca levaremos a sério o Evangelho. E, assim, de que valem as nossas catequeses, as nossa homilias, a nossa vivência da caridade?
Este amor de Deus, "o amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever, antes de mais, para cada um dos fiéis, mas é-o também para a comunidade eclesial inteira" (20). Por isso a actividade caritativa da Igreja não pode ser apenas da responsabilidade de um qualquer grupo paroquial ou ser feita por mera filantropia, mas tem de ser a manifestação de um dever estruturante da Igreja. É que "para a Igreja, a caridade não é uma espécie de assistência social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence à sua natureza e é a expressão irrenunciável da sua própria essência" (25).

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