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24 de janeiro de 2008

Fé e Compromisso


ENCRUZILHADA HISTÓRICA

José Dia das Silva

A palavra ética apareceu, nestes últimos dias, a propósito das confusões do BCP e da possível intromissão governamental. Não sei o que terá acontecido, até porque os 98% da lista vencedora tanto podem indicar que não se trata de um problema de intromissão como ilustrar a subserviência e dependência patológica de muitos dos nossos empresários relativamente ao Estado, o que é uma falta de ética bem mais gravosa, a de "comer à mesa do orçamento".
É claro que este episódio se pode enquadrar nos muitos milhares de outros casos que esta nossa sociedade produz e aceita como facto consumado. Quantas formas, subtis ou descaradas, de corrupção: desde coisas tão inconscientes, como passar à frente de outros numa fila demorada; ou mais intencionais, como as várias formas de "levar" o polícia a não considerar uma infracção, como se a lei não fosse para cumprir ou fosse só para os outros; até a formas mais institucionalizadas: como já se suspeitava, investigadores da Judiciária informaram que 40% dos casos de corrupção estão associados às autarquias, mas, diga-se em abono da verdade, de uma forma "democrática", isto é, envolve toda a gente, do presidente da câmara e vereadores até ao cantoneiro passando por toda a lista de "servidores" camarários. É assim mesmo: "ou há moralidade ou comem todos!".
Estes são exercícios de falta de ética pessoal, onde apenas contam os meus interesses, muitas vezes privilégios disfarçados em "direitos adquiridos": a quantas manifestações deste tipo temos assistido por parte dos grupos corporativos da nossa sociedade!
Mas há também a falta de ética da parte de todos os que não querem pôr os seus talentos e competências ao serviço do bem comum: cidadãos que recusam a política partidária porque a política é uma coisa suja; os que não aderem às várias associações cívicas por mero comodismo; empresários que não investem porque não estão para correr riscos; etc...
Pior ainda é a falta de ética dos que não tendo competência para um lugar se recusam a deixá-lo por falta de consciência das suas reais capacidades ou porque… perdem dinheiro ou prestígio social. É o problema da infinidade de chefias intermédias que já aqui referi no último comentário e que são uma das principais causas da falta de motivação e de transformação dos nossos cidadãos em agentes produtivos, responsáveis e comprometidos do futuro. E é também o caso de alguns cristãos que aceitam lugares de responsabilidade, como Conselhos Pastorais, Económicos, animadores de equipas, sem saber o que lhes compete e sem se prepararem minimamente como se os compromissos eclesiais fossem coisas secundaríssimas.
Claro que há outras dimensões deste fenómeno. Mas quero apenas referir a brutal falta de ética da nossa sociedade que admite, impávida e serena, que haja 2 milhões de pobres (cada 4 de nós não podia responsabilizar-se por um pobre?), que haja 200 000 pessoas a passar fome (cada 50 de nós não podia libertar um esfomeado desse flagelo?). A que grau de insensibilidade chegámos que não nos incomoda que um sem-abrigo morra de frio à porta das nossas casas ou que haja pessoas a sofrer fome todos os dias? E já não se trata apenas de um acolhimento pessoal: quantos pontos do PIB significaria acabar com esta fome e miséria primária? Certamente bem poucos. Eu sei que se não fossem as ajudas nomeadamente estatais o nosso índice de risco da pobreza em vez de 18% seria 40%, mas bem podíamos fazer mais um esforço.
Mas voltando à questão de fundo: como é possível que nos tenhamos tornado tão insensíveis, tão "brutos", tão desumanos? Não é uma questão de humanidade mudarmos?
Até porque há muitos sinais positivos. Em contraste com o individualismo da maioria, quantos milhares de voluntários visitam hospitais, prisões, pessoas isoladas, trabalham no Banco alimentar e similares. Em contraste com a baldice de tantos serviços, 75 000 servidores públicos (eu que sou má língua não diria um número tão baixo, mas este foi referido no último programa "Diga lá Excelência") aguentam este país trabalhando para lá do que a lei lhes exige. Em contraste com a ganância das multinacionais e bancos, temos as experiências do microcrédito, do comércio justo, da economia de comunhão, do apoio ao auto-emprego. Apesar de tremendas dificuldades, milhares de mulheres, no Terceiro Mundo, "aguentam" os filhos, muitas vezes tirando o pão da boca, e a própria sociedade e transmitem uma cultura libertadora enquanto os homens se dedicam à nobre arte da matança e da crueldade.
Este é o "resto" de ética que vai crescendo silenciosamente e que, como a semente, acabará por vencer e tanto mais rapidamente quanto maior for o nosso contributo pessoal. Até porque não temos grandes escolhas, já que estamos confrontados com o velho dilema bíblico: "Repara que coloco hoje diante de ti a vida e o bem, a morte e o mal" (Deut 30,15). Neste momento de encruzilhada histórica, a escolha é nossa: de cada um, de cada povo, da humanidade inteira.

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