Fé e Compromisso
O DOM DO NATAL
José Dias da Silva
Embora publicada mais tarde, a encíclica Deus caritas est vem datada de 25 de Dezembro de 2005. Este pormenor talvez clarifique uma questão que alguns puseram. Por que escreve Bento XVI, um teólogo encarregado da "defesa da fé", a sua primeira encíclica, não sobre um tema teológico de fundo, mas sobre a caridade, que é o tema mais "batido" pelos cristãos?
A data pode ajudar, porque faz referência ao Natal, a grande manifestação do infinito amor que Deus tem à humanidade. O que o Papa quis, penso eu, foi alertar os cristãos não tanto para o exercício, sobre o qual dá orientações pastorais, mas sobretudo para os fundamentos da caridade. E o fundamento aparece logo nas primeiras palavras: "Deus é amor" (1Jo 4,16).
Efectivamente a prática da caridade pelas comunidades cristãs pode estar demasiado ligado a um sentimento de filantropia, ter-se deixado burocratizar ou mesmo, sob pressão do Estado e da angústia perante tanta miséria, ter-se tornado uma extensão da Segurança Social.
Porque a Igreja não tem o exclusivo nem o monopólio da ajuda aos pobres nem da luta contra as injustiças e desigualdades sociais, onde está o específico da acção dos cristãos e das suas comunidades?
Não se trata de algo exterior a nós, exigido pelo esquecimento ou a violação de direitos fundamentais. Não se trata de mero sentimentalismo. Para os cristãos tem de ser muito mais que isso. É necessário ir às raízes bíblicas para perceber a nossa especificidade.
Temos, portanto, de começar por conhecer melhor o nosso Deus que é amor, que quis partilhar connosco o seu amor, que quis ser dom-graça para nós: dom puro; não um dom mercantilizado como são tantas das nossas ofertas, que insinuam reciprocidade.
Por isso, numa sociedade, e até numa Igreja, que têm objectivamente separado o amor de Deus das outras formas de amor, o Papa quis "retornar" à sua unidade através da noção e da experiência da caridade. Bento XVI foi mais longe que qualquer outro papa, ao recusar a separação entre o eros, entendido como desejo humano expresso sexualmente, e o agapé, que representa a forma mais elevada do amor, a doação oblativa do amor que pode ir até ao sacrifício total do eu em favor do tu. E apresenta a transição entre estes dois amores como "um movimento interior que transforma o amor erótico em generosidade entre um homem e uma mulher, fundada sobre o dom total de si, um ao outro" (cardeal Francis George). Então, tomando esse amor entre o homem e a mulher como paradigma, todos os outros amores humanos, também e especialmente aos mais pobres, têm de ser um dom total de si ao outro, como Deus se deu totalmente ao homem, indo até à morte de cruz.
Não se trata apenas de dar e, muito menos, coisas materiais, pois todos, pouco ou muito, damos. O que é necessário é dar-se, como Deus que desceu do céu à terra, da divindade à humanidade, da sua "instalação" intratrinitária ao compromisso histórico na libertação do homem e do mundo. Até porque no mundo, o amor de Deus só pode derramar-se e atingir toda a humanidade através do nosso amor, amor oblativo, amor doação. Esta é a grande, a única, missão da Igreja: testemunhar pela palavra e pelas obras o amor indesmentível de Deus à humanidade.
Por outras palavras. Nós temos de amar como Deus nos ama, porque Deus nos ama. Temos de amar prioritariamente os mais fracos, porque Deus ama prioritariamente os mais fracos. Se assim não for, seremos bondosos, solidários, filantropos, muito humanos, mas não seremos cristãos. Porque o amor não é algo exterior ou acidental ao nosso Deus mas faz parte da sua essência, então o amor também faz parte obrigatória da essência do ser cristão. Portanto, somos obrigados a amar como Deus ama.
Assim, esta encíclica desafia as comunidades e os cristãos a interrogarem-se sobre a sua vivência da caridade e sobre a razão do seu compromisso caritativo. A propósito vêm-me à memória palavras do P.e Acílio num dos últimos Gaiatos: "Gosto dos Vicentinos. A maioria são gente de primeira na linha de acudir aos Pobres. A visita frequente às famílias pobres da sua devoção e empenho, traz-lhe sempre um senso comum e uma visão de enorme largueza que nenhum estudo académico transmite. A inteligência e o coração trabalham a par". O espírito vicentino é ainda hoje um modelo a não perder: na sua simplicidade, na sua exigência de acompanhar o outro, de ir a sua casa e à sua vida (dar-se) e não apenas na "distribuição do cabazes" ou na resolução de problemas pessoais (dar). Temos de construir comunidade e não apenas oferecer serviços que melhorem a vida das pessoas.
Não estou a propor modelos. Estou apenas a recordar um espírito – dar-se – que deve ir sendo traduzindo nas novas realidades. Porque só seremos cristãos quando nos dermos em vez de darmos.
É Natal: Deus deu-se-nos para que nos demos, a nós próprios e não apenas as nossas prendas!
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