Obra de Rua – um encontro com o Evangelho e com os outros
A quem chega e a vê pela primeira vez, a Casa do Gaiato de Miranda do Corvo, que existe desde 1940, lembra uma quinta antiga, bonita, encaixada no meio da vila e de aspecto tranquilo e seguro. As caras e sorrisos que a habitam agora, pertencem a 45 rapazes acolhidos por esta instituição e às pessoas que, com eles, vivem e trabalham, num ambiente familiar onde a proximidade se sente nas palavras e nos gestos.
A Obra de Rua, nome dado pelo Padre Américo ao seu projecto de recuperação social, de auxílio aos pobres e de acção educativa com rapazes de rua, reúne hoje cinco Casas do Gaiato em Portugal, três em África, residências para rapazes (estudantes e trabalhadores), o Património dos Pobres, respondendo ao problema de habitação de famílias pobres, e ainda o Calvário, para pobres com doenças incuráveis. Nas palavras do padre João Rosa, já nomeado responsável pela Obra de Rua, "os valores fundamentais na base da obra do Padre Américo são, em primeiro lugar, os do Evangelho" porque foi com Jesus Cristo, o grande encontro da sua vida. Acrescenta ainda que, "quem se encontra com o Evangelho tem que se encontrar com os outros e ele, Pai Américo, encontrou-se principalmente com os mais pobres e, sobretudo, com as crianças das ruas de Coimbra".
Se, no início, era sobretudo à rua que iam buscar-se os rapazes, agora os que chegam à Casa vêm através do tribunal de menores, da comissão de protecção de menores, de grupos de assistência social organizados ou mesmo a pedido das próprias famílias que reconhecem não ter capacidades económicas ou educativas suficientes. As crianças chegam, muitas vezes, sem referenciais afectivos, como explica o padre João Rosa que acrescenta que "vêm mais esfaceladas intimamente do que no tempo do padre Américo". Por isso o ambiente familiar e de proximidade assume uma grande importância. A Casa do Gaiato chegou a acolher cerca de 100 crianças mas, para este responsável pelos gaiatos, "os grupos menores são importantes para que se estabeleça um relacionamento educativo capaz e a personalização e a proximidade são a resposta indicada hoje".
Aquilo que os gaiatos encontram assenta no princípio base de uma obra pensada para ser "de rapazes, por rapazes, para rapazes". A eles estão entregues muitas tarefas da casa e a eles cabe organizarem-se, liderados por um chefe. Como explica o padre João Rosa, e utilizando uma expressão do padre Américo, escolhe-se o "mais avisado" e o trabalho que lhe cabe "é muito importante mas também muito difícil. O chefe é um companheiro. Ninguém pode viver sem amigos mas a certa altura ele tem que estar acima dos amigos. Tem que ser o mais consciente, o mais responsável, capaz de defender o rapaz e de ser justo, sério e autêntico. Os rapazes, em geral, não são parvos e sabem escolher". Este é também um exercício de liberdade que parte da confiança depositada em cada gaiato. A responsabilidade, a educação pelo trabalho e o cultivo de valores humanos são outras das directivas de uma pedagogia que, ainda hoje, funciona e dá frutos.
A independência dos rapazes é sempre o objectivo último. Não se pede a ninguém que saia da Casa quando faz dezoito anos e alguns permanecem ligados a ela, habitando um quarto individual, ocupando já um lugar no mercado de trabalho. O projecto da Obra vai no sentido de conseguir para o rapaz uma autonomia progressiva depois de este concluir a escolaridade obrigatória e de receber formação profissional: "queremos, primeiro, servir estes rapazes, acolhê-los no drama que foi e é a sua vida e tentar, com persistência, que eles sejam os gestores da sua própria vida, com os instrumentos que a casa do gaiato lhes dá – vida familiar, relação inter-pessoal, responsabilidade, confiança". É isto que, para o padre João, define uma Casa do Gaiato.
Casa do Gaiato – em diálogo com o mundo
A Obra nasceu em Portugal numa altura em que poucas estruturas organizadas se dedicavam ao apoio social. Numa espécie de estremecimento de estruturas e formas de pensar, o padre Américo pôs mãos à obra e misturou-se no mundo. Para o actual responsável pala Casa do Gaiato de Miranda, "este movimento gerou, na sociedade portuguesa, uma onda de simpatia que ainda persiste" e que não nasce só na Igreja mas também na sociedade civil. É esta "onda de simpatia" que está na origem de uma espécie de sentimento de partilha fraterna que sustenta uma instituição que nunca precisou de pedir dinheiro ao Estado e que não o faz, mesmo por princípio. Porque, para o pai que sonhou a Obra de rua, "negócios nem com o Vaticano". O problema maior não é, portanto, económico, mas antes humano e os que trabalham com os rapazes pedem, sobretudo, gente que queira entregar a sua vida, servindo a Obra de Rua.
Depois das acusações dirigidas recentemente à Casa do Gaiato que a associavam à violência sobre as crianças, a trabalho infantil exagerado e a uma falta de rigor técnico nos processos educativos, o padre João Rosa espera que seja possível um diálogo sereno e aberto com um mundo que nunca se quis separado da Obra de Rua. Para combater uma falta de conhecimento das pedagogias, do trabalho e dos valores propostos por esta Obra, a instituição quer, sobretudo, trazer a sociedade à Casa do Gaiato. Do diálogo com o Estado, mais concretamente, com a Segurança Social, nasce o Conselho Pedagógico-Social assente também na necessidade de repensar formas de fazer. "Há acertos a fazer na pedagogia e isso leva-nos a algumas cedências para entrarmos no mundo em que vivemos. Queremos recuperar o respeito que sempre tivemos. O Estado achou interessante a nossa pedagogia dos rapazes para os rapazes e houve uma receptividade e uma tentativa de perceber o nosso modo de estar mas nós tivemos também que ir ao encontro. A pedagogia é evolutiva. Diziam-nos que estávamos sozinhos e isolados e nós fomos para o terreno".
Este Conselho, que existe agora em todas as Casas do Gaiato, é formado por pessoas da sociedade civil que, não fazendo parte da comunidade residente, apoiam com regularidade o funcionamento das casas, num contacto directo com os gaiatos. Em Coimbra, uma professora catedrática dá, todas as semanas, explicações aos gaiatos, um jurista fornece apoio em casos de dúvida quanto à aplicação da lei ou quando se põe um problema de adopção, um psicólogo acompanha o crescimento emocional e psíquico dos rapazes. "Esta gente funciona como uma equipa de apoio e o Estado neste momento respeita-nos apesar da baralhada que houve na comunicação social".
Um "servidor da Obra"
São alguns os desafios que o padre João Rosa assume com a ocupação do cargo de responsável geral da Obra de Rua e diz querer, antes de mais, "ser um servidor da obra". Como primeiros passos, assume alguns objectivos: "Precisávamos de sangue novo e esse é o primeiro desafio. Os nossos padres estão já numa idade avançada e não há renovação. Depois é importante procurar serenar depois destes problemas que houve e estabelecer diálogo sem medo, não nos julgando o emblema principal da sociedade, na acção de bem-fazer. É também com os outros que crescemos. Finalmente, é importante nunca esquecer que esta é uma obra da Igreja. O padre Américo costumava dizer que nós somos dos Bispos. Queremos centrar-nos na comunhão com a Igreja porque não há verdadeira eficácia se não houver unidade e comunhão".
A Obra de Rua celebra, este ano, o cinquentenário da morte do padre Américo e, a casa de Paços de Sousa, acolheu, no dia 16 de Junho, uma grande celebração. Em Coimbra, "talvez tenha havido um bocadinho de esquecimento", diz o padre João Rosa que afirma, no entanto, que sabe "que não é por falta de respeito". Para este servidor de uma Obra que coloca os pobres e os que mais precisam no centro, "há marcas profundas, há memória profunda da presença e da passagem do padre Américo. Os homens como ele são imortais e, por isso, há sempre tempo de repor a verdade".
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